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O premiê Mikhail Gorbachev, último secretário-geral do Partido Comunista na URSS, e o presidente americano Ronald Reagan: mentores da transição? |
O premiê Mikhail Gorbachev, último secretário-geral do Partido Comunista na URSS, e o presidente americano Ronald Reagan: mentores da transição?| Foto:

A humanidade parece ainda não ter assimilado o "breve século 20", conforme o batizou, no livro A Era dos Extremos, o historiador britânico Eric Hobsbawn. Depois de cem anos (e mais este início dos próximos cem) tão agitados, é de fato natural – até saudável – se interrogar: como interpretar os grandes eventos do presente ou do passado próximo?

Em que momento – e por que – eles saem das manchetes de jornal para os livros de História? Até que ponto a sensação de estar "vivendo um momento histórico" é própria do nosso tempo acelerado, em que tudo acontece na sala de casa ou no ambiente de trabalho, nas telas de televisão e do computador? Ou essa seria uma percepção peculiar à espécie humana, desde os seus primórdios ávida por se antecipar a grandes mudanças – e a única sobre a face da Terra capaz de amalgamá-las em linguagem inteligível (textos, imagens) a ponto de ter criado aquela que é talvez a mais antiga prática do conhecimento, justamente a História?

Da encruzilhada entre aquilo que lembramos do passado e a versão dele que valerá no futuro, a ensaísta argentina Beatriz Sarlo conclui: "O passado é sempre conflituoso. A ele se referem, em concorrência, a memória e a história, porque nem sempre a história consegue acreditar na memória, e a memória desconfia de uma reconstituição que não coloque em seu centro os direitos da lembrança [...]". O trecho, do livro Tempo Passado – Cultura da Memória e Guinada Subjetiva, se refere à necessidade de ouvir – e criticar, diz a autora, ainda que soe cruel às vítimas de atrocidades históricas – o testemunho dos torturados pela ditadura argentina.

Algo que, aliás, se fez em escala muito menor em relação ao regime militar brasileiro, já que a Lei de Anistia (de 1979, portanto mais uma aniversariante de 2009), ao vetar processos contra os agentes da tortura no país, inibiu a reconstituição pública da violência por quem a sofreu, literalmente, na pele. Por que se expor, talvez tenham considerado as vítimas, se ninguém seria mesmo punido?

"A Lei de Anistia veio para consagrar um procedimento comum entre nós: a aproximação de extremos. Ela é mais conciliadora do que reparadora. Não seria errado dizer que ela é a imagem e semelhança do comportamento político nacional", analisa o historiador José Carlos Sebe Bom Meihy, da Universidade de São Paulo (USP). Autor de um livro intitulado O 11 de Setembro, sobre o acontecimento mais marcante deste início de século 21, e a respeito do qual o que não faltam são relatos testemunhais (inclusive o das câmeras que a tudo registraram), Meihy tenta colocar em perspectiva o que se conta sobre o fato histórico: "Ao falarmos do passado, sempre estaremos construindo versões", diz. "Talvez possamos nos aproximar dos detalhes factuais, mas eles não explicam muito mais do que o ataque material ", observa o professor sobre o atentado às Torres Gêmeas. Por analogia, pode-se perguntar: e no que a descrição detalhada dos porões da ditadura ajudaria a explicar o que de fato acontecia lá em cima – nas ruas, nos gabinetes do poder?

No caso dos documentos, alguns também registrando testemunhos, uma ampla frente de trabalho para os historiadores se abriu com o fim do comunismo, lembrado este ano por conta do événement, ou marco histórico, da Queda do Muro de Berlim, há 20 anos. Junto com os regimes comunistas vieram abaixo seus incrivelmente invasivos e bisbilhoteiros serviços de inteligência. "A abertura dos arquivos secretos foi muito importante, pois propiciou confrontar diversas versões conflitantes anteriores da época da Guerra Fria com os documentos oficiais", observa o historiador Angelo Segrillo, professor da USP e especialista no regime soviético. "Entretanto, também não se deve fetichizar os arquivos e documentos oficiais, como se contivessem em si a verdade definitiva e absoluta."

Sobre as biografias de figuras desses regimes antes fechados atrás da chamada Cortina de Ferro, publicadas em grande número após a queda do comunismo, Segrillo afirma que "a visão mais ‘negativa’ de diversos personagens do regime soviético a partir da abertura dos arquivos – Stálin e Lênin, por exemplo – não é mera coincidência. Vários arquivos eram ‘secretos’ (confidenciais) exatamente por mostrarem essas facetas mais negativas dos líderes e do regime".

A discussão, aqui, é também quanto ao rigor desse tipo de relato histórico, ainda mais com os acontecimentos – e cadáveres que eventualmente tenham produzido – ainda quentes. "Alguns historiadores mais tradicionais exigem realmente um grande recuo histórico para a possibilidade de um olhar objetivo sobre os eventos do passado", afirma Segrillo. "Eu, como filiado à corrente da chamada história do Tempo Presente, acredito ser possível analisar acontecimentos recentes com uma abordagem histórica, que é diferente da jornalística."

Mas, afinal, que mudança é essa na disciplina – é bom evitar a denominação "ciência" – pela qual todos, com maior ou menor sofrimento, passamos na escola e parece gerar grande interesse nos dias atuais (ao menos é o que indicam os números do mercado editorial, com suas tiragens impressionantes de livros de "história para leigos", para não falar, de novo, das sempre populares biografias, auto-biografias e testemunhos)?

Segundo Beatriz Sarlo, de um lado, impõe-se "o lugar espetacular da história oral" e das "histórias do passado mais recente"; de outro, as "narrações históricas de grande circulação", do tipo que "une a reconstituição dos fatos à interpretação de seus sentidos e garante visões globais [...]". "A esse modelo", lembra ainda a ensaísta, "também corresponderam as ‘histórias nacionais’: um panteão de heróis, um grupo de excluídos e réprobos, uma linha de desenvolvimento unitário que conduzia até o presente" – o que, curiosamente, corresponde ao mais típico "trauma" imposto pelas aulas de história, e hoje, pelas mãos de jornalistas ou historiadores bissextos, vende como água nas livrarias. Entre as duas abordagens, entra a ficção – nada como um bom filme ou romance histórico, até mesmo a minissérie da televisão, para tentar entender o passado próximo ou distante.

Mas talvez, nesse aspecto, venha bem a calhar o alerta de Hobsbawn, desta vez em seu livro de memórias, Tempos Interessantes: "Mais do que nunca a história é atualmente revista ou inventada por gente que não deseja o passado real, mas somente um passado que sirva a seus objetivos. Estamos hoje na grande época da mitologia histórica". Prodígio que, nascido em 1917, não apenas "historiou" o século 20 e este início de 21, mas principalmente se dedicou a viver a sua era, o intelectual britânico diz mais: "Os negócios da humanidade são hoje conduzidos por tecnocratas, resolvedores de problemas, e para os quais a história é quase irrelevante; por isso, ela passou a ser mais importante para nosso entendimento do mundo do que anteriormente".

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