Em “Inimitável”, terceira faixa de “Jardim-pomar”, Nando Reis convoca: “se vamos todos morrer, então vamos tratar de viver”.
A vida, sua finitude – e, dentro dela, a necessidade de se acreditar em algo maior do que podemos compreender, comumente chamado de Deus – e as paixões adquiridas enquanto aqui estamos são temas que vão e voltam entre as reflexões do cantor e compositor no oitavo álbum de estúdio de sua carreira solo.
Gravado entre Seattle e São Paulo, o independente “Jardim-pomar” (lançado pelo selo Relicário, de Nando) chega às lojas na quinta-feira e, no dia seguinte, às plataformas digitais, com 11 canções inéditas.
Reflexão sobre a vida
“Eu sou um sujeito apaixonado. Pelo que faço, pela vida... Acho que a reincidência do tema ‘amor’ nas minhas canções pode parecer que é apenas da relação entre pessoas, mas é uma forma análoga de falar do amor à vida. A relação amorosa é um vínculo que traz a necessidade de se cuidar da vida e ter a consciência de que ela tem finitude, algo muito presente nesse disco. O inconformismo com essa certeza traz a ideia de que há Deus, um poder superior no comando, um mistério. E eu sou apaixonado pelo mistério”, explica Nando, de 53 anos.
Quando faço uma declaração de amor à minha mulher, por mais pessoal que seja, ela é utilizada como ponto de partida para a criação e a formulação do que significa a vida.
À mulher, Vânia Passos, por exemplo, Nando dedica “4 de março” e “Só posso dizer”, balada que se repete no disco em versões distintas, gravadas nas duas locações – o intervalo entre elas foi de nove meses.
“Quando faço uma declaração de amor à minha mulher, por mais pessoal que seja, ela é utilizada como ponto de partida para a criação e a formulação do que significa a vida. Da devoção através do elogio. Da evolução através da gratidão. E, por analogia e metaforicamente, para a declaração de que a vida é sobretudo aquilo a que eu devo a possibilidade de sentir o que eu sinto por estar vivo”, filosofa.
Produção
“Jardim-pomar” surge quatro anos depois de “Sei” e traz algumas particularidades do ponto de vista logístico e de produção. Enquanto o disco anterior, o primeiro de Nando Reis e de sua fiel banda Os Infernais lançado de maneira independente, é descrito pelo músico como “uma aventura quase imprudente enquanto negócio”, o novo foi dividido em etapas de produção que obedeceram aos recursos disponibilizados por ele para que saísse da forma como queria.
Por isso, por exemplo, o álbum foi gravado em duas cidades diferentes – isso sem contar rápidas sessões no Rio –, algo inédito na carreira solo do músico paulista. E, consequentemente, traz dois produtores. A parceria com Jack Endino (de trabalhos com Nirvana, Soundgarden, Mudhoney, Titãs), aprovada em “Sei”, foi repetida no braço de Seattle do processo - que só existiu por conta de um convite para se apresentar em um cruzeiro no Alasca, missão cujo ponto de partida em solo americano seria exatamente em Seattle.
De volta a São Paulo, Nando convocou outro músico nascido na terra do grunge para finalizar o trabalho: Barrett Martin, ex-baterista de bandas como Skin Yard e Screaming Trees.
“Barrett e Jack são amigos e trabalham juntos, mas têm métodos completamente distintos ao produzir um disco. Isso trouxe uma personalidade própria para cada música, apesar de estarem em um conjunto dentro disco, algo que eu sempre procuro”, comemora Nando. “Mas elas estão lá, misturadas, e eu não indico quais foram gravadas em cada lugar, pois ainda tenho essa visão de álbum enquanto obra única. Sendo Barrett um baterista, muitas vezes a chave está na batida. O mais difícil é localizar.”
Parcerias
Dentre as 13 faixas de “Jardim-pomar”, apenas “Concórdia” não é inédita. Composta por Nando Reis, a música foi gravada por Elza Soares em “Vivo feliz” (2003) e, só agora, foi registrada em estúdio pelo músico, que escreveu todas as canções de seu oitavo disco - velho parceiro, Samuel Rosa é o responsável pela melodia de “Como somos”, única música do álbum que traz coautoria.
A letra [de “Azul de presunto”] diz que a forma como as coisas podem ser vistas ou descritas varia justamente do ponto de vista individual de cada um. Não são absolutas. Logo, nada faria mais sentido do que ela ser cantada por várias pessoas. E quis juntar meus amigos, artistas que eu admiro e minha família. Eu sabia que o Paulo, o Arnaldo, o Sérgio e o Branco iam se divertir, porque é o tipo de música que a gente poderia ter feito nos Titãs
Por falar em parceiros, Nando resolveu juntar velhos, novos e novíssimos nas camadas de voz de “Azul de presunto”, que traz referências assumidas do funk “Airbounds”, gravado pelo americano George Clinton no álbum “The Cinderella Theory” (1989).
Estão lá, entre versos como “Será que porco é um polvo rosa/ Ou um porco roxo é que é polvo?”, as vozes dos ex-companheiros de Titãs – um dos fundadores, Nando deixou a banda após 20 anos, em 2002 – Arnaldo Antunes, Paulo Miklos, Branco Mello e Sérgio Britto, as cantoras Luiza Possi, Pitty e Tulipa Ruiz e os filhos do músico, Zoe, Theo e Sebastião – os dois últimos preparam o disco de estreia de seu projeto musical, 2 Reis (“o material está magnífico”, garante o pai).
“A letra dessa música diz que a forma como as coisas podem ser vistas ou descritas varia justamente do ponto de vista individual de cada um. Não são absolutas. Logo, nada faria mais sentido do que ela ser cantada por várias pessoas. E quis juntar meus amigos, artistas que eu admiro e minha família”, explica, antes de lembrar com empolgação do momento em que gravou com os ex-companheiros de estrada.
“Eu sabia que o Paulo, o Arnaldo, o Sérgio e o Branco iam se divertir, porque é o tipo de música que a gente poderia ter feito nos Titãs. Fiquei muito feliz, por adorar aquelas pessoas e nossa história. E, ali, naquela emoção, notei que fazia 25 anos que não entrávamos os cinco juntos no estúdio. Lembrei de tudo o que fizemos e do que só a gente conseguia fazer.”
Ouça a canção “Só Posso Dizer”, uma das faixas de “Jardim-pomar”:
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