São Paulo (Folhapress) "Vivemos na era das catástrofes", diz B., personagem elusivo de Liquidação (Cia. das Letras, 112 págs; R$ 29), primeiro romance escrito pelo húngaro Imre Kertész depois de ganhar o Prêmio Nobel de Literatura, em 2002. A afirmação ecoa a propalada "imaginação do desastre", de Henry James, que se liga ao papel que o mal exercia nas ficções do antigo mestre.
Passados bem mais de cem anos, o mal não precisa mais ser imaginado. Ele está bem aqui, diante de nós. Para B., o mal é o próprio princípio da vida. Como portador da catástrofe, o homem dessa era "não tem destino, não tem qualidades, não tem caráter".
Não é uma perspectiva alvissareira, decerto, e ainda enseja nova crise na representação da realidade. Em Liquidação, Amargo, amigo e editor de B., discute a possibilidade de publicar as obras póstumas do escritor, que cometeu suicídio. Entram em cena a amante de B., além de dois outros amigos e a ex-mulher, Judit. Amargo também empreende uma busca por um romance perdido de B., uma obra-prima que ninguém viu, mas que, ao que tudo indica, havia sido composta.
Entretanto, parte da ação é vista por meio de uma peça de B., encontrada entre seus manuscritos, após sua morte. Ela dramatiza os conflitos editoriais e existenciais suscitados pelo suicídio de B., e seus personagens são Amargo, além dos demais citados. Onde está a realidade?
No início, um narrador introduz a história e apresenta-nos Amargo: "Imaginemos um homem e, para ele, um nome. Ou, ao contrário: imaginamos o nome e, para ele, o homem". Nessa condição supersensível, a realidade não passa de um "conjunto duvidoso e confuso de imagens, palavras e fatos existentes na memória de Amargo", ou seja, de um personagem que concebemos a partir de um nome.
A questão epistemológica central em Kertész (que figura em todos os seus livros, sobretudo em O Fiasco) é a da apreensão da realidade. Esse sentimento de irrealidade leva Judit, que esteve num campo de concentração, a exclamar noutra peça de B.: "Eu estive lá. Eu vi. Auschwitz não existe". Não se deve confundir o desabafo com a estúpida tese de muitos, como o presidente do Irã, Mahmud Ahmadinejad, que afirmam que o Holocausto não existiu. Kertész, que foi prisioneiro em Auschwitz e em Buchenwald, na verdade sugere que todas as histórias são intrinsecamente inenarráveis.
Constructos elaborados para emular a vida como num melodrama, como A Lista de Schindler (que ele abomina), constituem uma farsa.
A imaginação, que tanto serviu ao século 19, nas décadas seguintes passou a manter-nos sempre apartados da realidade. Kertész foi prisioneiro em Auschwitz, a realidade bruta e inenarrável; atravessou os anos de chumbo da dominação soviética e agora testemunha as ambíguas mudanças políticas que provocam a "liquidação" generalizada. Nesse estágio, a literatura vai aos poucos se tornando desnecessária.
O título de seu romance alude à idéia de encerramento, pois está relacionado ao fim das atividades da editora onde Amargo trabalha. O Estado, que a subvencionou durante 40 anos, decide não mais financiá-la. Mas liquidação também remete ao barateio necessário para uma, digamos, "queima de estoque".
Nossa era é a das catástrofes, mas também a da pechincha e do barateamento. Trata-se de uma idéia no fundo cômica. B. chama sua peça de "comédia". Para ele, o homem trágico já não existe. Restou-lhe apenas a "consciência trágica do destino". Os sobreviventes, ou seja, todos nós, somos figuras cômicas, em essência.
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