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O Ricardo Humberto já começou sofisticado: as primeiras ilustrações dele foram feitas no livro Moby Dick, de Herman Melville, lançado pela editora Abril, na clássica coleção Os Imortais da Literatura Universal. Sabe, aqueles livros de capa dura vermelha com letras douradas, famosos na década de 70? RH tinha uns 3 anos quando rabiscou a coleção inteira da nossa mãe, mais os sofás da casa, pufes, cadernos, paredes e, bem provavelmente, a nossa mãe também. Em mim, ele desenhava uns relógios legais no braço direito. Não sei porque, mas sempre no braço direito. "Peguei" essa mania de desenhar com ele, que provavelmente pegou com nosso avô materno, que vivia desenhando em qualquer papel que estivesse à mão. Ele desenhava muito na filha dele, também.

Quando criança, desenhávamos à noite na mesa da cozinha, em cadernos velhos. Criávamos exércitos estelares e ele me ensinou a desenhar ônibus em caixinhas de chá. Aliás, outra mania que peguei do Ricardo: tomar chá. Nunca fez muito sentido isso, afinal, não temos um gene anglo-saxão sequer. E daí? Desenhar também não fazia muito sentido.

Na adolescência meu irmão – bem, esqueci de dizer, mas sou irmão do desenhista em questão – meio que virou referência no bairro para "o cara que sabia desenhar". Tinha o Ricardo e os outros.

Quando tinha 16 anos, RH voltou a morar em Curitiba e eu fui trabalhar como balconista de videolocadora. Ah, esqueci de dizer que a gente morava numa lúgubre cidade do interior, num bairro lúgubre em nossa lúgubre casa. Para o RH, imagino que desenhar era quase uma questão de sobrevivência. Engraçado que o desenho era a fuga que nós mais perseguíamos.

Na adolescência eu visitava o Ricardo muito pouco. Ele morava num apê que era meio que um playground cultural, tinha quadros, fitas cassetes, muitos discos, livros legais, revistas e os desenhos dele, que ele jamais deixava alguém encostar a mão ou qualquer outra parte do corpo.

Nesse bunker, lembro que ele desenhava 10, 12 horas seguidas. Livros do Michelangelo aberto na prancheta – talvez fosse só para me impressionar, não sei – tintas, fotocópias, fotos, litros de chá. O fato é que isso melhorou tanto o trabalho dele que eu nem ouso tentar acompanhar, e me ensinou mais do que o gosto pelo desenho: me ensinou a ter a determinação de sempre desenhar, sempre evoluir, seja na linguagem, seja na técnica. Se não fosse por essa determinação que "peguei" dele, provavelmente hoje eu seria ainda um balconista de videolocadora, desenhando ônibus em caixinhas de chá. Eu tenho muito a agradecer.

Benett Macedo é cartunista e chargista, tem 33 anos, trabalha na Gazeta do Povo e é editor da revista Zongo Comix.

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