Roberto Muggiati é um Moisés, um Maomé da História. Ele viu coisas extraordinárias e viveu para contá-las. Escreveu uma dezena de livros, falando sobre jazz, blues e rock. Um dos personagens do seu único romance, A Contorcionista Mongol (Record, 2000), é um anti-herói quixotesco, uma boa definição do próprio autor.
O jornalista de 73 anos trabalhou para a BBC em Londres, ajudou a criar a revista Veja e trabalhou na extinta Manchete. Começou a carreira na Gazeta do Povo e hoje colabora de vez quando com o jornal, escrevendo textos acachapantes de sua casa, no Rio de Janeiro.
Gerações de leitores brasileiros conhecem a tradução que fez para O Grande Gatsby, de F. Scott Fitzgerald. Também verteu John Fante, de Pergunte ao Pó, para o português. Hoje, às 19 horas, Muggiati assume a cadeira número 33 na Academia Paranaense de Letras, em cerimônia para convidados no Paço da Liberdade Sesc Paraná. A APL tem hoje 40 intelectuais, entre eles Laurentino Gomes, autor de 1808.
Nas respostas (geniais) a seguir, Muggiati fala de vida, morte e das coisas que acontecem entre uma e outra.
Espero que me perdoe, mas começo a entrevista com uma questão típica daqueles questionários corporativos: "Descreva a sua personalidade".
Alma de espião. Na BBC de Londres, certa noite, eu e um colega invadimos o escritório dos chefes. Li o meu dossiê corporativo. Dizia que eu era um cara genial, mas tinha um grave defeito: era "self-effacing". Ou seja, eu me autoapagava. Segui em frente na maratona profissional e, para quem vê de fora, me dei bem. Mas continuo "low-profile", achando cansativo vender o meu peixe.
Acho que sou discretamente cordial, suave, envolvente, inseguro, indeciso nas relações afetivas, temendo a "prisão" do casamento e a insatisfação das relações múltiplas.
Amante dos animais convivo a maior parte do tempo com três cadelas e três gatos.
Amante do trabalho, meu refúgio predileto.
À espera da morte, como todos nós, torcendo um pouquinho para que ela me esqueça...
O senhor passou dos 70, não? É uma questão meio "Kung Fu e Gafanhoto", mas qual é a melhor coisa da idade?
Faço 74 em outubro. Idade é fatalidade, você não a escolhe. Paul Nizan abre Aden-Arabie com a frase: "Eu tinha vinte anos. Não deixarei ninguém dizer que é a idade mais bela da vida." Eu, aos 20 anos, não me sentia tão bem quanto agora. De Gaulle proclamou: "A velhice é um naufrágio." Existem velhos que chegam muito velhos à velhice. Prefiro fechar os olhos ao tempo. Superei a Síndrome de Peter Pan, negando o envelhecimento. Agora, mais ambicioso, passei a namorar a Síndrome de Benjamin Button. No conto de Scott Fitzgerald ["O Curioso Caso de Benjamin Button"], o sujeito nasce "aparentemente com cerca de setenta anos de idade." A partir daí Button começa a regredir na idade. Fazendo os cálculos, como fiz 70 anos em 2007, vou completar, na contagem regressiva buttoniana, 66 anos no dia 6 de outubro. Em 2027, festejarei meus 50 anos. Em 2057 voltarei aos 20. Claro, não passa de uma fantasia. A realidade biológica é implacável. Mas, não importa a idade, tudo estará bem se você for lascivo, larápio, lépido, libidinoso, literário, lúdico e lúcido.
Ainda tem paciência para perseguir novidades na música, na literatura e no cinema?
Estou aberto a novidades, mas às vezes rever um clássico acaba sendo uma novidade. No cinema, na música. Já a literatura é um mundo imenso e gosto de imaginar que ainda me resta tempo para reler o Proust, reler Shakespeare, A Ilha do Tesouro, Os Três Mosqueteiros, para ler todo o Simenon, todo o Henry James, ler e reler o Dalton e o Salinger (baixei recentemente 22 contos dele inéditos...) É uma espécie de arrogância, principalmente quando sei que vou passar a maior parte do tempo escrevendo como pena de aluguel, sem muito tempo para ler.
Existe algo na música de qualquer época que ainda consegue comovê-lo? (E escrevo "ainda" porque, depois de ver Coltrane e Miles Davis ao vivo, imagino se todo o resto não soa um pouco banal.)
Sim, ver e ouvir de perto Miles, Coltrane, Cannonball, Ellington, Monk, Bud Powell, Dexter Gordon, Roland Kirk é coisa de um valor extremo. Mas, ainda é possível vibrar com o "som da surpresa", como aconteceu comigo há um mês, com o piano solo do Keith Jarrett no Municipal do Rio.
Ouvi dizer que, na juventude, o senhor largou tudo para ir viver uma paixão em Paris. Seria capaz de fazer a mesma coisa hoje?
Na verdade, fui morar em Paris com uma idée fixe. Imaginem um cara de 23 anos que pega um avião e se instala num hotelzinho na Île de la Cité, com a cabeça feita pelos filmes da nouvelle vague: Les Amants, À Bout de Souffle, Ascenseur pour LÉchafaud, Les Liaisons Dangereuses [títulos originais de Os Amantes, Acossado, Ascensor para o Cadafalso e As Ligações Amorosas]... Jeanne Moreau, Brigitte Bardot, Françoise Arnoul, Marina Vlady, amando ao som visceral de jazz moderno. A paixão aconteceu por mera força da gravidade, quando conheci uma baiana desterrada com todo o charme e veneno da parisiense.
Sim, seria capaz de fazer a mesma coisa sempre. A gente nunca aprende. Por quê? Sei lá...
Qual é o aspecto que mais o agrada na experiência de assumir uma cadeira na Academia Paranaense de Letras?
O fato de ser o 300.000.001.º membro da instituição (parodiando o Dalton Trevisan, que, na crônica "Em Busca da Curitiba Perdida", diz que somos 300 milhões de acadêmicos...) Na verdade, a Academia representa um vínculo com minha terra natal, uma espécie de volta à minha Curitiba perdida.
Sua bibliografia parece um reflexo de suas preferências. Jazz, blues, Fitzgerald, Fante, Lennon, saxofone, mais jazz, Poe... Existe algo que gostaria de escrever e ainda não o fez?
Existe o Roberto Muggiati que viveu momentos-chave do mundo no lugar certo na hora certa como um Forrest Gump e foi até aqui uma espécie de Zelig da literatura, um ente camaleônico que ainda precisa escrever sua própria história e inventar sua própria ficção. Embora não haja coisa mais tênue do que a fronteira entre fato e ficção...
Está trabalhando em algum livro no momento?
Esporadicamente, escrevo minhas memórias. Aqui mesmo, estou contando coisas que ainda não contei (ou lembrando coisas que ainda não lembrei). Mas tenho anotado em meu computador, num arquivo chamado "opera", pelo menos 20 ou 30 ideias para romances, livros de contos, de ensaios, etc.
Dos seus livros, existe algum de que mais gosta?
Sim, o único romance, A Contorcionista Mongol. Achei que tinha escrito uma história genial e, como diz o Cony, sintetizando a futilidade do empenho literário, "ninguém tomou providência." Ninguém tomou sequer conhecimento. Mas continuo achando o livro uma obra-prima. E me consolo com o pensamento de que os três maiores escritores do século 20 morreram na merda, sem saber que o eram: Proust, Kafka e Joyce
Em Improvisando Soluções, o senhor fala sobre serendipidade e sobre jazz, a arte do improviso. O acaso é um tema que o interessa, não?
A lei da natureza é o caos. Por muito tempo os homens tentaram equacionar a vida segundo fórmulas lógicas e matemáticas. Até mesmo na noção recente mais sofisticada dos fractais. O acaso então rege muitas coisas importantes em nossa vida. É preciso saber reconhecê-lo e encampá-lo no momento certo. Mas não há lógica nisso, vivemos no meio do caos.
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