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Repressão violenta a estudantes que exigiam mais liberdade na China apressou reformas de Deng Xiaoping | Arthur Tsang/Reuters
Repressão violenta a estudantes que exigiam mais liberdade na China apressou reformas de Deng Xiaoping| Foto: Arthur Tsang/Reuters

Existem períodos em que a História parece avançar mais rapidamente do que os relógios. Foi assim em 1848, 1917 e 1968, quando o mundo passou por transformações tão intensas que acabaram por redesenhar paisagens políticas, econômicas e culturais. Em 1989, a História também pisou fundo no acelerador. Tão fundo que se pode afirmar, sem medo, que a sequência extraordinária de fatos precipitou o fim do século 20 e iniciou a era em que vivemos hoje.

Como observou o historiador Eric Hobsbawm, "não há como duvidar seriamente de que em fins da década de 1980 e início da década de 1990 um período se encerrou e outro novo começou". É difícil encontrar uma data daquele ano desprovida de um evento de relevância extrema. Peguemos como exemplo o 5 de julho de 1989, exatos 25 anos atrás, portanto. Naquele dia, o ainda prisioneiro Nelson Mandela encontrou-se pessoalmente pela primeira vez com o então presidente da África do Sul, P. W. Botha. A reunião foi secreta, mas em retrospecto foi um sinal tímido, porém inequívoco, de que o obsceno regime do apartheid começaria a ser desmontado.

O incrível é que nem sempre foi necessário aguardar o benefício da retrospectiva para perceber que algo de muito especial acontecia no planeta. Na metade de 1989, o furacão de notícias vindas dos quatro cantos do globo inspirou o cientista político Francis Fukuyama a publicar seu famoso – e polêmico – artigo "O Fim da História?", em que observava: "Podemos estar testemunhando não apenas o fim da Guerra Fria, ou o declínio de um período específico do pós-guerra, mas o fim da própria história, ou seja, o ponto final na evolução ideológica da humanidade e a universalização da democracia liberal ocidental como a forma definitiva de governo".

Passado um quarto de século, ainda é cedo para dizer quem tem mais razão, a tese ou os críticos dela, mas Fukuyama acertou em cheio num aspecto. Com o fim do comunismo no Leste Europeu, acabaram-se os modelos políticos concorrentes à social-democracia e à economia de mercado – e isso mesmo após a crise econômica global deflagrada em 2008. Quem duvida dessa afirmação deve se esquecer das economias planificadas, em que o Estado determinava tudo, da produção de cotonetes à preparação de ginastas olímpicos. Também em face disso, não fazem muito sentido as acusações de que as democracias ocidentais, seja o Brasil, os Estados Unidos ou a França, caminham para o socialismo apenas por adotar políticas sociais mais fortes. Mesmo no âmbito puramente econômico, medidas de intervenção estatal – sejam elas de inspiração keynesiana ou meras barbeiragens administrativas – estão muito distantes do dirigismo das economias realmente socialistas.

O fracasso desses sistemas veio num silêncio barulhento, com o perdão do oxímoro. Sim, houve multidões protestando contra os regimes, mas em geral as revoluções mais emblemáticas não envolveram violência nem enfrentamento radicais. Na Polônia, o partido Solidariedade, que sobrevivera à lei marcial em vigor desde 1981, ganhou praticamente todos os assentos parlamentares na eleição de junho de 1989 – que só ocorreu porque os dirigentes comunistas aceitaram negociar com a oposição no início do ano. Em entrevista, diz Michael Meyer, autor do livro 1989 – O Ano que Mudou o Mundo (Zahar, 2009): "Para mim, o momento mais dramático, aquele em que eu percebi que algo de enorme importância estava em andamento, foi quando conversei com o ministro da Justiça da Hungria, o comunista Kalman Kulcsar, em dezembro de 1988. Ele me mostrou uma cópia da Constituição norte-americana e disse ‘sr. Meyer, em 9 meses teremos algo assim por aqui’".

Mesmo o maior símbolo das revoluções de 1989, a queda do Muro de Berlim, em novembro, foi fruto de uma falha no discurso de um dirigente político. Naquele momento, mais de 1 milhão de alemães orientais solicitavam visto de saída do país, outras dezenas de milhares escapavam – ou tentavam escapar – pela fronteira da Hungria, que já havia retirado a cerca na divisa com a Áustria. Em entrevista coletiva transmitida ao vivo pela televisão, Günter Schabowski, chefe do Partido Comunista em Berlim, anunciou que o país liberaria os vistos. "Quando?", perguntou um repórter. A resposta – "Imediatamente" – foi parcialmente encoberta pelo ministro ao lado, dizendo que aquela era uma questão a ser debatida pelo gabinete. Tarde demais. Nas horas seguintes, a população começou a se aglomerar ao longo do muro, até que os guardas, atônitos, começassem a permitir a passagem para o lado ocidental.

Houve, é verdade, as revoltas sangrentas, como na derrubada de Nicolae Ceausescu – o ditador romeno que mandou atirar contra o próprio povo e acabou executado sumariamente no dia do Natal – e no massacre da Praça da Paz Celestial, na China. Esta última, uma repressão violentíssima de estudantes que clamavam por mais liberdade, acabou por apressar as reformas colocadas em andamento por Deng Xiaoping. Desde então, o Partido Comunista Chinês salvou-se sacrificando o velho regime. Fez isso ao perceber que uma excelente maneira de aplacar (ou adiar) convulsões sociais era por meio da abertura econômica que provocaria o "boom" verificado nos últimos 20 anos. "Ao promover uma válvula de escape para os insatisfeitos, o crescimento econômico da China ajudou a sustentar a estabilidade política interna", escreve Michael Elliott, editor da coletânea de ensaios 1989 – The Year that Defined Today’s World (Time Books, 2009).

Latinos

Na América Latina, os sinais dos novos tempos foram sentidos. Se o vizinho Paraguai ainda depunha o velho ditador Alfredo Stroessner – que viria a se exilar em Guaratuba, no litoral do Paraná – por meio de uma quartelada, o Brasil organizava suas primeiras eleições presidenciais em 29 anos. Na cédula, 22 nomes de candidatos, indício claro do represamento dos anseios democráticos das mais diversas correntes ideológicas. No mês seguinte ao pleito brasileiro, o Chile também elegia livremente o sucessor do regime de Pinochet.

Talvez mais adiante, 2011 e a Primavera Árabe sejam também observados como um período de grandes transformações geopolíticas – apesar de Egito, Líbia e, principalmente, Síria ainda deixarem seus futuros como uma questão em aberto. Interessante é perceber que os grandes protestos daquela região – bem como outros contemporâneos, como o Occupy Wall Street, nos EUA, e os de junho de 2013, no Brasil – foram impulsionados pelas redes sociais. Para saber como as pessoas puderam se mobilizar por meio da internet e de ferramentas on-line, é necessário olhar para 1989. Não para o Vale do Silício, mas para o CERN, na Suíça, e o surgimento da WorldWideWeb (leia, na página ao lado, a história deste e de outros eventos relevantes do período). Há 25 anos, de fato, surgia o mundo como o conhecemos hoje.

Música

Há 25 anos, Madonna causava escândalo com o clipe de "Like a Prayer", um dos maiores hits de 1989, e Michael Jackson recebia o apelido de "Rei do Pop" em uma premiação da música negra norte-americana, o Soul Train Music Awards. Mas o ano foi marcado também por uma farsa musical: o duo alemão de dance music Milli Vanilli, que atingiu o topo das paradas com "Girl You Know It’s True". Mesmo após rumores de que a dupla que aparecia em shows e entrevistas não era a responsável pelos vocais gravados em disco, o Milli Vanilli continuou aparecendo em inúmeros programas de tevê na Europa e nos EUA. Chegou a ganhar um Grammy no ano seguinte, apenas para devolver o troféu meses mais tarde, quando Fab Morvan e Rob Pilatus foram apontados como impostores em uma reportagem do Los Angeles Times. Estava dado o recado: no mundo do showbiz, imagem é tudo. Pelo menos até que se prove o contrário.

Algumas raízes do atual fenômeno sertanejo no Brasil também podem ser encontradas em 1989, ano em que Leandro & Leonardo levaram o estilo às alturas. Chitãozinho & Xororó já vinham popularizando a música do interior do país desde o início daquela década, mas "Entre Tapas e Beijos", gravada pela dupla goiana, só teria rival em Roberto Carlos e invadiria inclusive a programação das FMs. Assim, o pop-rock brasileiro assistia ao anúncio do fim de seu apelo radiofônico.

Cinema

A programação de cinema anda dominada por super-heróis? Pois boa parte da culpa pode ser colocada em Batman (foto), de Tim Burton, campeão de bilheteria nos EUA e segundo maior blockbuster global em 1989 – perdeu apenas para Indiana Jones e a Última Cruzada, de Steven Spielberg. Sim, houve filmes anteriores baseados em personagens de HQs – Superman: O Filme (1978), de Richard Donner, para citar um exemplo –, mas a gênese dos atuais roteiros que carregam os super-heróis com dilemas morais e dramas realistas está no filme de Burton.

Na década seguinte, os grandes estúdios aprenderam o truque e, desde então, inundam as salas de exibição com sequências e mais sequências de X-Men, Homem-Aranha e Homem de Ferro. A força das franquias, aliás, se consolidava em 1989, como comprovam De Volta Para o Futuro 2, Máquina Mortífera 2 e Os Caça-Fantasmas 2.

Dos filmes que continuam a inspirar o cinema sério, Faça a Coisa Certa, de Spike Lee, Crimes e Pecados, de Woody Allen, Sexo, Mentiras e Videotape, de Steven Soderbergh, e o belíssimo A Cidade do Desencanto, de Hou Hsiao-hsien, são apenas quatro exemplos lançados em 1989. No meio do caminho, Sociedade dos Poetas Mortos, de Peter Weir, e Nascido em 4 de Julho, de Oliver Stone, sucessos estrondosos de bilheteria reconhecidos também pela crítica.

Esportes

O epíteto "padrão Fifa" é candidato à expressão mais batida do ano no Brasil. Inicialmente usada para designar os estádios (ou melhor, arenas) construídos ou adaptados para a Copa do Mundo, na boca do povo ela virou uma espécie de selo de qualidade para tudo – muitas vezes, com ironia. Pois bem, foi a partir de uma tragédia ocorrida em 1989 que o "padrão Fifa" começou a surgir, embora sem esse nome.

Em 15 de abril daquele ano, 96 torcedores do Liverpool morreram por asfixia no velho estádio de Hillsborough, em Sheffield, norte da Inglaterra, antes e durante os minutos iniciais de uma partida contra o Nottingham Forest. Na arquibancada lotada, esmagadas contra as cercas de proteção, as pessoas gritavam por ajuda, mas os policiais, há anos reprimindo a violência dos hooligans, foram lentos demais para agir – quando um portão se rompeu e as pessoas conseguiram escapar, eles chegaram a empurrá-las de volta para o sufoco. Aos 5 minutos do primeiro tempo, o jogo foi interrompido e corpos já estavam sendo estendidos ao lado das cercas. As placas de anunciantes ao redor do campo foram usadas como macas (foto).

A comoção pública exigia explicações e, após uma investigação, a Justiça inglesa apontou como causas da tragédia as péssimas condições de segurança nos estádios e a forma como os torcedores em geral eram tratados. O mundo do futebol passaria por uma transformação. Os maiores times da Inglaterra tomaram como inspiração as arenas dos EUA – de beisebol e futebol americano – e modernizaram suas praças, que passaram a ter assentos numerados em todos os setores. Alguns falam em elitização do esporte, mas o fato é que, desde os anos 1990, segurança e conforto passaram a ser pré-requisitos na construção e reforma de espaços esportivos em toda a Europa e, posteriormente, no restante do mundo.

Literatura

O episódio mais inescapável do universo das letras em 1989 pouco tem a ver com literatura em si, mas sim com fundamentalismo religioso e liberdade de expressão artística, temas que, apesar dos constantes e acalorados debates que suscitam, parecem ter avançado e recuado na mesma medida durante os últimos 25 anos. Em 14 de abril daquele ano o aiatolá Khomeini, líder supremo do Irã, emitiu uma fatwa, ou sentença de morte, ao escritor indo-britânico Salman Rushdie (foto) por ter escrito Os Versos Satânicos, considerado blasfemo ao Islã.

O que se seguiu foi uma onda de atentados dirigidos ao autor e a profissionais envolvidos com a obra – bombas explodiram em livrarias norte-americanas e inglesas, o tradutor japonês foi assassinado, o tradutor italiano e o editor norueguês foram esfaqueados e 27 pessoas que participavam de um festival literário na Turquia morreram queimadas em um incêndio provocado por radicais islâmicos. Estima-se que ao todo 60 pessoas tenham morrido na controvérsia.

A violência acabou por causar um cisma inclusive entre intelectuais. A feminista Germaine Greer acusou Rushdie de ser um "megalomaníaco, um imperialista de pele escura" e o escritor marxista John Berger demandava a retirada de circulação de Os Versos Satânicos para evitar uma "guerra santa". O grande autor de romances policiais John le Carré também sugeria que o livro fosse recolhido. A maior parte da comunidade literária, no entanto, incluindo Ian McEwan, Susan Sontag, Martin Amis, Gay Talese e Christopher Hitchens, cerrou fileiras com Rushdie, participando de leituras públicas da obra e condenando a fatwa.

Durante a década de 1990, Rushdie foi obrigado a viver em constante fuga e com um enorme aparato de segurança. Mesmo hoje, precisa lançar mão de disfarces e esconderijos. Talvez para evitar que a polêmica desembarcasse por aqui, só em 1998 o Brasil viu lançada uma edição nacional de Os Versos Satânicos. Em 2012, um instituto iraniano aumentou o prêmio pela cabeça do escritor, para US$ 3,4 milhões. Das recorrentes polêmicas causadas por charges do profeta Maomé aos boicotes a emissoras que veiculam um beijo gay, o impasse entre religião e liberdade criativa continua praticamente imutável.

Tecnologia

Uma revolução no mínimo tão impactante quanto os tremores políticos vindos do Leste Europeu estava sendo gestada silenciosamente na Suíça, no início de 1989. Na época, a internet era um serviço interessante, mas pouco viável comercialmente. O principal obstáculo residia na falta de um sistema padrão para armazenar, buscar e localizar informações on-line. Em março daquele ano, o inglês Tim Berners-Lee (foto), a partir de seu laboratório em Genebra, resolveu o problema ao propor a linguagem HTTP e, com ela, a possibilidade de estabelecer um endereço específico para cada conteúdo colocado na rede.

Berners-Lee também apresentou o primeiro navegador, que chamou de WorldWideWeb (WWW), bem como uma linguagem que permitia criar as páginas e os sites como os conhecemos hoje em dia, a HTML. Os avanços passaram despercebidos do grande público à época, mas sem eles a internet permaneceria uma torre de babel, com seu uso restrito apenas a cientistas da computação e outros profissionais da tecnologia. Ao contrário, nos últimos 25 anos, praticamente todos os meios de informação existentes foram engolidos e passaram a ser apresentados através da rede digital. Os usuários, por sua vez, puderam interagir com esses dados de um jeito que tevê, rádios e livros jamais permitiram.

Em fevereiro de 1989, na península da Flórida, outra peça do infinito quebra-cabeça digital em que nos metemos era lançada ao espaço. Um equipamento de nome banal – Veículo Espacial Número 14 – destinado a orbitar a 19 mil quilômetros de altitude foi o primeiro dos 24 satélites a integrar o sistema de posicionamento global, o GPS, na sigla em inglês. Assim como a internet, o GPS foi desenvolvido inicialmente para fins militares. Quando entrou em operação completa, em 1994, o projeto parecia extravagante: US$ 12 bilhões do orçamento do Departamento de Defesa dos EUA desembolsados para determinar latitude, longitude e velocidade de aparelhos na superfície da Terra.

Saiu barato. De informações sobre o trânsito ao acompanhamento de animais ameaçados de extinção, do monitoramento de embarcações à localização da lanchonete mais próxima, de operações de resgate em áreas remotas aos mil e um aplicativos no smartphone que se baseiam em georreferenciamento, as aplicações do GPS são infinitas. E a invasão de privacidade? Um problema, sem dúvida, e talvez o preço que faltava para completar os US$ 12 bilhões do projeto inicial.

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