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Umberto Eco: inventário das utopias mais conhecidas a partir de um rico material cartográfico | Lea Crespi/Divulgação
Umberto Eco: inventário das utopias mais conhecidas a partir de um rico material cartográfico| Foto: Lea Crespi/Divulgação
  • Ensaio ilustradoHistória das Terras e Lugares Lendários Umberto Eco. Record, 480 págs., R$ 165

Umberto Eco, além de sua vasta produção ensaística e da obra romanesca que o transformou em best seller a partir de O Nome da Rosa, em 1980, adora escrever livros ilustrados. Assim foi com História da Beleza, História da Feiura e A Vertigem das Listas, em que se valeu fartamente não só da pintura ocidental, como da iconografia oriental e das culturas exóticas e primitivas. Agora, aos 82 anos recém-completados, ele embarca numa História das Terras e Lugares Lendários. Admitindo que "dicionários de lugares fantásticos e fictícios existem muitos (e o mais completo é o ótimo Manual dos Lugares Fantásticos, de Alberto Manguel e Gianni Guadalupi)", Eco define sua própria empreitada: "Em suma, há terras e lugares lendários dos mais variados gêneros, que têm apenas uma característica em comum: seja quando dependem das lendas antiquíssimas, cuja origem se perde na noite dos tempos, seja quando são produtos de invenções modernas, todos eles criaram fluxos de crenças. É da realidade destas ilusões que este livro pretende tratar."

Valendo-se não só de obras de arte de todas as épocas, mas também de rico material cartográfico, Eco faz o inventário das utopias mais conhecidas: a partir da Cidade de Deus de Santo Agostinho (354-430), ao clássico de 1516 que nomeia as terras inomináveis, As Ilhas da Utopia, de Thomas More: "Utopia significa etimologicamente não lugar – embora alguns prefiram entender o U inicial como o eu grego, e leiam bom ou ótimo lugar." Assim, More "descreve um estado ideal e queria justamente jogar com esta ambiguidade, dado que toma como modelo um país inexistente." Eco cita ainda A Cidade do Sol (1602) de Tommaso Campanella e a Nova Atlântida (1627), de Francis Bacon.

Apesar de sua vasta erudição – ou justo por causa dela – Eco não pende para o academismo. Ao percorrer as utopias mais recentes e até mesmo aquelas da era midiática, ele vai da A Ilha do Tesouro de Stevenson ao Aleph de Borges, do Castelo de Dracula à Gotham City de Batman, da ilha de King Kong ao Rick’s Café Américain de Casablanca, da Atlântida de Júlio Verne à Hogwarts de Harry Potter. Tudo isso apoiado na bem-humorada postura que firmou em Como Se Faz uma Tese: "Fazer uma tese significa divertir-se."

O Brasil inspirou a Utopia

O Brasil também merecia o seu atlas de lugares lendários: a São Paulo modernista de Macunaíma, a Bahia do cacau de Jorge Amado, o sertão mítico de Guimarães Rosa. Em seu último romance, namorando o realismo fantástico, Erico Verissimo inventou Antares. Seu filho, Luis Fernando Verissimo, arguto cronista da atualidade, comentou recentemente sobre utopias e distopias. No artigo "Sob o Edredom", escreveu: "George Orwell não foi, afinal, um mau profeta, foi apenas um profeta apressado. A sociedade controlada por um Big Brother que tudo vê e tudo sabe, que Orwell previu para 1984, só começou a existir, com os avanços da bisbilhotice eletrônica, há pouco tempo. Hoje sabemos que tudo que mandamos por e-mail ou falamos pelo telefone, mesmo que seja apenas a notícia do furúnculo da vovó, pode estar sendo monitorado." Na crônica "Utopias e Distopias" afirma: "Todas as utopias imaginadas até hoje acabaram em distopias, ou tinham na sua origem um defeito que as condenava. A primeira, que deu nome às várias fantasias de um mundo perfeito que viriam depois, foi inventada por Sir Thomas Morus em 1516. Dizem que ele se inspirou nas descobertas recentes do Novo Mundo, mais especificamente do Brasil, para descrever sua sociedade ideal, que significaria um renascimento para a humanidade, livre dos vícios do mundo antigo."

Por mim, só embarco em utopia com larga dose de humor. Como a Pasárgada do poema de Manuel Bandeira: "Vou me embora pra Pasárgada/ Lá sou amigo do Rei/ Lá tenho a mulher que eu quero/ Na cama que escolherei." E a Maracangalha de Dorival Caymmi, que não fica muito longe também, e onde a felicidade suprema prescinde até de companhia: "Eu vou prá Maracangalha/ Eu vou!/ Eu vou de uniforme branco/ Eu vou!/ Eu vou de chapéu de palha/ Eu vou!/ Eu vou convidar Anália/ Eu vou!/ Se Anália não quiser ir/ Eu vou só!/ Eu vou só sem Anália/ Mas eu vou!"

A ilusão lendária

Umberto Eco nasceu em Alessandria, no Piemonte. Mas, como Mussolini ocupou a africana Abissínia entre 1936 e 1941, alguns acreditam que ele nasceu em Alexandria, no Egito, a cidade da famosa biblioteca antiga. Uma grande revista nacional deu até o autor como "nascido numa cidade cercada de lendas, Alexandria...". Eco acredita que a ficção fornece uma realidade que nem a realidade concreta é capaz de superar: "O mundo da narrativa é o único universo onde podemos estar absolutamente seguros de uma coisa e que oferece uma ideia forte de Verdade." Confiram neste delicioso trecho do novo livro:

"Sabemos muitíssimo bem que existe um mundo real, no qual aconteceu a Segunda Guerra Mundial e o homem chegou à Lua e que existem também os mundos possíveis da nossa imaginação, no qual existiram e existem Branca de Neve e Harry Potter, o inspetor Maigret e madame Bovary. Ao aderir ao contrato ficcional, decidindo levar a sério um mundo possível narrativo, temos de aceitar que Branca de Neve foi despertada de sua letargia por um Príncipe Encantado, que Maigret mora em Paris, no boulevard Richard Lenoir, que Harry Potter fez seus estudos de magia em Hogwarts, que madame Bovary tomou veneno. E se alguém dissesse que Branca de Neve nunca despertou de seu sono, que Maigret mora no boulevard de la Poissonière, que Harry Potter estudou em Cambridge e que madame Bovary foi salva in extremis por um antídoto aplicado pelo marido, receberia nossos protestos (e talvez fosse reprovado numa prova de literatura comparada)."

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