O jornalista e escritor José Castello se tornou biógrafo de dois dos maiores poetas brasileiros de todos os tempos. Primeiro, traçou o perfil do Vinicius de Moraes, o "poeta da paixão". Depois, com uma série de entrevistas, escreveu um livro sobre um poeta que de certa maneira é o oposto do apaixonado carioca: João Cabral de Mello Neto, o escritor pernambucano que ficou conhecido como um "engenheiro da poesia".
Em O Homem Sem Alma, que acaba de ser reeditado, Castello defende que João Cabral não era o homem frio e desapaixonado que se imagina. Agora, a nova edição publicada pela Bertrand Brasil traz o diário que o jornalista, na época repórter de O Estado de S. Paulo, fazia durante suas entrevistas com o escritor. O "Diário de Tudo", como o próprio João Cabral apelidou, traz a vida do poeta na intimidade.
Vivendo em Curitiba desde 1994, Castello trabalha em dois novos livros. E tenta criar um círculo de leitores na cidade, para amenizar a ausência de uma vida literária nela e combater uma visão "intelectualista" da literatura. Veja a seguir os principais trechos da entrevista concedida ao Caderno G.
Caderno G O que mais o marcou na personalidade de João Cabral de Melo Neto?
José Castello O que mais me surpreendeu nele foi a hiper-sensibilidade. Um homem que, pelo menos na velhice, quando eu o conheci, tinha a sensibilidade à flor da pele. O que desmente e contradiz radicalmente tudo o que se diz a respeito dele, pelo menos enquanto poeta. Tudo o que já se escreveu sobre o João Cabral de alguma forma vai dizer que é o poeta da razão, da contenção, o engenheiro da palavra, o arquiteto da palavra e ele mesmo reforçou sempre essa idéia. Você vai encontrar com esse sujeito pela primeira vez, como eu fui, o que é que você espera? Um homem que corresponda a essa imagem pública do poeta. E eu encontrei o oposto. Um homem de uma sensibilidade muito forte, um homem frágil, não só pela idade, pelos problemas de saúde, mas delicado, extremamente delicado na sua relação com o mundo e com as coisas.
Você arrisca uma interpretação de que ele não escrevia lirismo porque se comovia demais?
Ele disse isso. Já naquele momento da vida ele reclamou: "Eu não consigo mais ler poesia porque eu me emociono demais". Sugeri que ele lesse poesia ruim, J. G. de Araújo Jorge. Ele falou: "Já tentei. E choro também." Falei para ele ler romances. "Não agüento". Perguntei o que ele lia. "Fico lendo tratados de História e de Geografia. Porque são as únicas coisas que eu consigo ler e avançar. Mesmo assim, às vezes, me emociono."
O sentimento mais forte na descrição que você faz do João Cabral parece ser a melancolia, a angústia. Ele era assim mesmo?
É claro que a velhice traz uma depressão. Os médicos dizem isso, não sou eu que estou dizendo. Mas não é só isso, eu tenho certeza. Os grandes poetas, os grandes escritores, cada um à sua maneira, são sempre pessoas hiper-sensíveis. Veja o Vinicius. A imagem oficial dele é a do poetinha saltitante, sempre com um copo de uísque na mão, contando piadas no show. E eu escrevi uma biografia do Vinicius e passei três anos pesquisando, e descobri que ele tinha momentos de melancolia profunda. E o João Cabral, eu estou convencido até pelas histórias que ele me contou, tinha essa melancolia desde menino. E isso não é coisa que se cure.
Desde que foi publicado, dez anos atrás, o livro mudou alguma coisa na imagem de João Cabral?
Eu realmente não sei te dizer como os estudiosos acadêmicos lêem esse meu livro. Teve algumas crtíticas favoráveis de pessoas ligadas à universidade. Mas podem ter sido exceções. Esse livro compõe um caminho que eu mesmo venho tentando fazer desde a biografia do Vinicius, que é o de trabalhar a literatura sob uma perspectiva antiintelectualista. Não é um desprezo pela teoria ou pelos estudos literários, muito pelo contrário. Mas a impressão que eu tenho é que nas últimas décadas é que a abordagem da literatura se tornou não só intelectualista mas cientificista. A literatura é vista hoje como um assunto para especialistas. A idéia é que você tem que ter uma bagagem para fazer uma leitura. Eu acho que não, que você tem que estar é desarmado, para sofrer o impacto do livro, ou não.
Existe o risco de criarmos uma geração de escritores que trabalham só para a crítica?
Já temos. E isso é uma tendência muito forte na literatura brasileira contemporânea. Muitos escritores escrevem hoje como se fizessem uma tese de mestrado ou de doutorado, para cumprir bem as regras do orientador. Ou para agradar a crítica, para agradar a alta moda literária.
Pode citar exemplos?
Um escritor que é bom mas que escreve para a história, para ocupar um lugar, para a crítica, é o Bernardo Carvalho. Muitos poetas escrevem também com esse espírito: "para dialogar com outros poetas", "para reinterpretar Drummond ou o modernismo" ou "para dar um salto em relação ao concretismo". Escrevem um pouco como funcionários da alta literatura. E o grande escritor não escreve para ninguém. Não escreve para a crítica, para agradar, para ganhar prêmios, para vender, para virar best-seller.
Quais são os seus próximos projetos?
Estou trabalhando em dois livros. Um sobre jornalismo cultural e outro sobre a figura do pai na literatura. Também tenho o projeto Ateliê do Pensamento junto com o Flávio Stein, que é músico e pesquisador interdisciplinar. Vai ser um círculo de leitores em que não haverá professores nem palestrantes. As pessoas se sentarão e discutirão sobre livros que as perturbaram, que mudaram suas vidas. Vamos começar com encontros mensais. Ainda não está fechado, mas tenho certeza de que vai sair.
Por que você decidiu vir morar em Curitiba?
Quando deixei de trabalhar em jornalismo, resolvi que eu precisava de mais introspecção. E aqui era uma cidade em que isso era possível.
Existe uma vida literária interessante aqui?
Curitiba é uma cidade que tem muitos escritores. Vários deles publicando fora daqui, ou com livros publicados por editoras locais com uma obra regular. Mas não tem vida literária. Existe uma competição feroz. Em qualquer meio literário isso existe. Mas aqui mais do que em outras cidades. Existe uma desconfiança muito grande e isso impede uma confraternização. O Dalton Trevisan é um sintoma disso. Talvez ele seja o mais lúcido de todos. Sabendo que o jogo é pesado, resolveu se proteger.
Você defende que João Cabral deveria ter recebido o Nobel. Algum escritor brasileiro hoje mereceria ganhar o prêmio?
Talvez o João Gilberto Noll, que embora ainda seja novo tem uma obra fabulosa. E eu também acharia justo se a Adélia Prado ganhasse o Nobel.
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