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Ali Smith: “Os deuses podem ser muito pé-no-chão, quando querem” | Sarah Wood/Divulgação
Ali Smith: “Os deuses podem ser muito pé-no-chão, quando querem”| Foto: Sarah Wood/Divulgação

Antes de abrir o novo livro da escocesa Ali Smith, Garota Encontra Garoto, é muito importante ter algumas idéias em mente.

Nossos avós são os detentores das melhores histórias, pouco importa se o avô que narra os episódios se refere a ele mesmo como menina ou não.

O mito de Ifis, contado por Ovídio nas Metamorfoses (sobre uma jovem cretense criada pela mãe como menino e transformada em homem às vésperas do casamento), é tão mundialmente popular quanto a Coca-Cola.

Tão importante quanto apresentar na orelha de um livro a biografia da escritora, seus livros lançados e prêmios conquistados, é sublinhar a orientação sexual da mesma, enfatizar que ela vive com sua companheira há 20 anos e dedica todos os seus livros a ela, porque tais informações são "imprescindíveis" para o entendimento da trama de um livro de ficção.

Com isso em mente, o leitor já pode ser apresentado às personagens principais de Garota Encontra Garoto: as irmãs Anthea e Imogen, e a misteriosa Robin.

Anthea e Imogen são órfãs e foram criadas em Inverness, na Escócia, por avós pouco ortodoxos que narravam suas aventuras juvenis com sarcasmo e orgulho invejáveis. Antagônicas desde sempre, elas cresceram para se tornarem opostas em tudo, embora trabalhem na mesma agência de publicidade, a Pura.

Anthea sempre soube que era gay e segue os passos do avô. Suas sacadas sarcásticas e seu modo espirituoso de lidar com as questões do dia-a-dia ecoam Holden Caufield de O Apanhador no Campo de Centeio, criado por J.D. Salinger.

Ela passa grande parte do livro num constante monólogo interior e consegue, em uma única página, por exemplo, divagar acerca de temas bastante díspares – como se suicidar num rio e entender por que diabos todas as pessoas que trabalham em shopping centers parecem tão tristes e maldosas –, ou elaborar teorias sobre sebos serem, na verdade, igrejas.

Já Imogen, que a princípio parece ser uma simples coadjuvante da irmã rebelde, representa uma típica jovem adulta bem estabelecida de qualquer cidade do mundo com seus cacoetes e lugares-comuns, sua vidinha ganha, suas roupas certas e seu ranço monstruoso de querer parecer moderna. Homofóbica e reprimida (não seriam a mesma coisa?), numa das partes mais divertidas do livro, ela lista um guia de referências de cultura popular para se identificar uma jovem lésbica nos anos 1990: elas ouviam as Spice Girls mas preferiam a Sporty Spice, não paravam de tocar CDs do George Michael, sempre votavam pelas meninas no Big Brother e não perdiam um episódio de Buffy, a Caça-Vampiros.

Imogen passa a vida tentando impressionar seu chefe, Keith, um publicitário afetado (não seriam a mesma coisa?), que é, possivelmente, uma das descrições mais apuradas de um publicitário de que se tem notícia na literatura moderna. Ele é do tipo que fala frases de impacto: "Como, exatamente, nós podemos engarrafar a imaginação?". Mas Imogen não consegue sair da mesmice e o seu desgosto com a vida aumenta.

Um dia, as duas irmãs reencontram a andrógina Robin, uma velha conhecida dos tempos de ginásio, transformada numa versão escocesa da feminista radical norte-americana Valerie Solanas, especializada em pichar outdoors de campanhas publicitárias com mensagens engajadas.

A partir do reencontro das três, Imogen começa a questionar suas certezas pessoais e profissionais e Anthea se apaixona por Robin, joga tudo para o alto e decide acompanhá-la em suas intervenções urbanas.

No relacionamento das duas é que surge a referência ao mito de Ifis, embora despida de qualquer intenção em parecer intelectualizada, como demonstram as personagens num diálogo em que Robin tenta explicar para Anthea a história de Ifis.

"Apenas dê à luz como de hábito e crie a criança, disse ela."

"Como de hábito? Uma deusa usou a frase como de hábito?"

"Os deuses podem ser muito pé-no-chão, quando querem."

Em Garota Encontra Garoto, Ali Smith traz um mito grego ao século 21 para defender a idéia de que amor vai ser sempre amor, pouco importa a orientação sexual dos envolvidos. Isso pode até ser um clichê, mas, ao tratar de amor, clichês acabam sendo verdades no fim do dia. Também não faz diferença a opção sexual da autora estar estampada na orelha de um livro ou não, porque são histórias como essa que nos fazem continuar procurando (o amor).

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Serviço

Garota Encontra Garoto, de Ali Smith. Companhia das Letras, 136 págs., R$ 35.

Miguel Nicolau Abib Neto é escritor e tradutor.

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