História foi o que fez o então presidente de Moçambique Joaquim Chissano ao assinar um acordo de paz com Afonso Dhlakhama, líder do grupo rebelde Renamo (Resistência Nacional Moçambicana), em 1992, colocando um fim no conflito que durou quase duas décadas. Dez anos depois, a realidade de uma nação livre da guerra civil e ainda em recuperação aparece em O Outro Pé da Sereia (Companhia das Letras, 336 págs., R$ 43), romance histórico de Mia Couto com lançamento simultâneo no Brasil e em Moçambique.

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A narrativa se alterna entre o século 21 e o 16, quando o jesuíta Gonçalo da Silveira viaja ao reino do Monomotapa, na fronteira entre os atuais Zimbábue e Moçambique, com a missão de converter o imperador local ao cristianismo, moralizando os selvagens. Essa disposição de Couto em recontar a História é, segundo ele próprio, uma "obrigação". "Existem outras narrativas do passado e elas podem ser mais instigantes que esse texto solene que consta dos compêndios escolares", diz.

Autor de Terra Sonâmbula e Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra, o jornalista e biólogo moçambicano fala, a seguir, de língua, leitura, literatura e África.

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Gazeta do Povo – Em O Outro Pé da Sereia, ao retratar episódios da colonização portuguesa na África, você se utiliza da ironia. Há quem diga que essa palavra – ironia – é muito usada e pouco compreendida nos dias de hoje. Para o crítico Harold Bloom, por exemplo, ironia é metáfora. Qual é o sua compreensão de ironia e como ela aparece em seu trabalho?

Mia Couto – A ironia resulta de um jogo que recusa com sabedoria o confronto e sugere cumplicidades que estão na base do próprio prazer do leitor se converter em produtor do texto. Nada está fechado, o narrador despe-se da arrogância de saber mais do que os outros. Bloom tem razão, há uma metáfora sempre que se produz ironia. E mais do que isso, a verdadeira despedida faz-se pelo riso. Quando há choro, o adeus ainda é um esboço de ruptura. E neste livro há um tempo que se despede dos personagens. Como se ele, o tempo, fosse um outro personagem, errante, aspirando ao esquecimento.

O que há por trás desse desejo seu de recontar a História?

A História tal como a conhecemos está quase sempre mal contada. Retiraram dessa narrativa a pequena história, oficializaram-na e manipularam essa memória do passado de acordo com interesses de elites. A nossa obrigação é reconhecer que existem outras narrativas do passado e elas podem ser mais instigantes que esse texto solene que consta dos compêndios escolares.

Em um comentário jocoso, dizem que os EUA e a Inglaterra são dois países separados pela mesma língua. No que diz respeito ao idioma, como você vê a relação entre Moçambique e Portugal?

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Não é exatamente o mesmo. Na mesma língua nos entendemos e nos reconhecemos diversos, portadores de culturas diferentes. A relação entre Moçambique e Portugal passou por uma catarse recente: uma guerra de libertação que nós vivemos num contexto bem diferente da relação que a Inglaterra manteve com os EUA. No segundo caso, foram os filhos que se revoltaram contra os pais, no quadro de uma cultura e uma religião que eram semelhantes. Aí a questão da língua torna-se um dos territórios centrais de demarcação de identidade. No nosso caso, a condição é diversa: não há familiaridade entre os ex-colonizados e os ex-colonizadores.

De acordo com José Saramago, "as coisas andam mal quando é necessário estimular a leitura, porque ninguém precisa estimular o futebol, que tem por trás uma fabulosa operação de marketing. Não vale a pena o voluntarismo, é inútil, ler sempre foi e sempre será coisa de uma minoria. Não vamos exigir de todo mundo a paixão pela leitura". Na sua opinião, a literatura é mesmo para uma minoria?

Não é que seja para uma minoria. Ela é produzida e consumida por uma minoria mas isso não releva de alguma condição essencial. Eu acredito que se pode alargar a base social dos que produzem e usufruem da escrita e da leitura. E que essas linguagens possam ser abraçadas por uma vasta multidão, tal como sucede com a música.

O Brasil é conhecido por ser um país de não-leitores – o que aflige boa parte dos escritores nacionais. Em Moçambique a situação é semelhante, não? Como é ser escritor em um país que lê pouco?

É-se escritor ou não se é, sem que isso seja determinado pela condição social. É claro que o leitor vive condicionado pelo contexto político e social do seu mundo. A maior parte dos escritores não escreve "para", nem escreve "porque". São movidos por razões interiores, que eles próprios desconhecem. O ser lido é um momento posterior à criação.

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A leitura deve ser estimulada?

Deve, sim. O gosto pela leitura não nasce espontaneamente. A cultura livresca, contudo, deve ser transformada para se tornar sedutora num tempo em que os jovens são atraídos por outros veículos de comunicação, de saber e de prazer. É preciso que o livro desça à rua, conquiste pelo lado lúdico, aceite ser penetrado pela oralidade e por uma cultura cada vez mais marcada pelo visual.

Kurt Vonnegut (Matadouro 5) disse que a crítica o rotulou de "escritor científico" por ser formado em química. O fato de ser biólogo influencia sua literatura de alguma forma?

Influencia mas não nesse sentido. A biologia me sugeriu formas de chegar a linguagens diferentes e de encontrar uma nova familiaridade com outros seres, as plantas, os bichos. No sentido inverso, a literatura ajudou-me a desmistificar a cinzenta seriedade da ciência.

Você afirmou que sua relação com a oralidade é uma questão de resistência. Em que sentido?

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Trata-se de um resistência contra a hegemonia do universo da escrita. Na realidade, em lugar de um diálogo produtivo entre oralidade e escrita nós fomos construindo uma relação de falso conflito e a oralidade é vista como uma espécie de parente pobre, quase indigente.

Você lê obras de autores brasileiros contemporâneos?

Leio o que posso e o que me chega. Budapeste de Chico Buarque foi um dos livros recentes que mais me impressionou.

Ficou famosa a frase do economista queniano Thilo Thielke, pedindo para que o mundo pare de ajudar a África. Segundo ele, a ajuda internacional fortalece a corrupção e somente quando cessar o auxílio é que o continente poderá se desenvolver. Você concorda com essa visão?

Não inteiramente. Tal como o desenvolvimento não poderá ser resolvido pela chamada "ajuda" também a ausência de cooperação, em si mesma, não resolverá nada. É preciso interrogar o que é isso de "ajuda". É verdade que há questões que necessitam de maior envolvimento interno, que se resolvem por dentro. Mas eu vejo pelo exemplo de Moçambique em que isso é dar um passo maior que a perna. Explico: mais de metade do orçamento do Estado vem de fundos externos. Terminar isso, de um dia para o outro, seria uma catástrofe. Mais de metade dos funcionários ficaria imediatamente sem salário e o país sucumbiria. E não se pode dizer que Moçambique seja um caso particular de corrupção. A maior parte desse dinheiro é realmente aplicado embora, estou certo, existam desvios mas eles não colocam em causa o conjunto. As soluções são mais complexas e a corrupção é um jogo a duas mãos: há do lado dos chamados "doadores" gente que está enchendo os bolsos. O que há a mudar é toda uma qualidade de relação, uma troca desigual instituída de forma sutil. Também não precisamos que nos dêem mais. Precisamos sim que nos tirem menos.

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