Entrevista - Cristovão Tezza, escritor
Da conquista extraordinária à estupidez oficial
Na crônica "Polícia do Pensamento", publicada pela Gazeta do Povo no dia 4 de outubro, o escritor Cristovão Tezza comentou a polêmica em torno da campanha publicitária de lingerie protagonizada por Gisele Bündchen, questionando o fato de a Secretaria de Política para as Mulheres, da Presidência da República, querer "proibir uma propaganda de calcinhas e sutiãs". O G Ideias procurou o autor de O Filho Eterno para discutir os limites tênues entre ser politicamente correto e violar a liberdade de expressão.
Humoristas apontam deslize, mas fazem soar alerta anticensura
O sucesso de uma piada é diretamente proporcional à quantidade de verdade contida nela daí vem a identificação por parte do público e as risadas que lavam a alma do autor da tirada. Shakespeare ensina isso em suas peças. Sejam cômicas ou trágicas, trazem um bobo da corte que denuncia hipocrisias, casos amorosos e recebe em troca tapinhas condescendentes ou um punhado de moedas, dependendo do interlocutor.
A cultura como reforço da opressão
Podia ser lúdica a intenção de Noel Rosa quando, em 1932, falou de uma "Mulher Indigesta" que merecia um "tijolo na testa". No contexto de hoje, no entanto, mesmo que o compositor esteja no Olimpo da música brasileira, dificilmente seus versos poderiam ser poupados de terem revelado seu sentido misógino. Assim como, de fato, não passou em branco a canção "Fricote", de Luiz Caldas, acusada de ter conteúdo racista, na década de 1980. E mesmo o polêmico Tim Maia, em "Vale Tudo", hoje decepciona muita gente que o tem como uma figura transgressora, já que, ali, a única coisa que não vale é "dançar homem com homem" ou "mulher com mulher".
Provocações criam necessidade de busca pelo equilíbrio
Quando a esquerda norte-americana, que já tinha a seu crédito conquistas significativas no âmbito trabalhista, saiu nos anos 1960 e 1970 em busca de novas causas, encontrou nas chamadas "minorias", formadas por índios, mulheres, negros, hispânicos e homossexuais, um tema digno de militância apaixonada. Desses movimentos sociais da sociedade civil nasceu a chamada New Left, a quem é atribuída a gênese do que viria a ser o conceito do politicamente correto, disseminado depois para outros países.
O termo politicamente correto está banalizado. Evocado e utilizado a torto e a direito nas mais diversas circunstâncias, em nome de uma veriedade de causas, algumas muito justas, o que era para ser uma vitória dos movimentos sociais, a favor dos direitos de grupos e minorias historicamente vítimas de discriminação e preconceito sistemáticos, de alguma forma se esgarçou. E, em alguns casos, se esvaziou ou virou clichê.
Nos últimos meses, o Brasil viu, de camarote, algumas discussões que demonstram uma certa desorientação no que diz respeito aos limites que separam e colocam em oposição a liberdade de expressão de alguns e o direito de se sentirem ofendidos de outros. E, no meio desse campo de batalha, com discursos que defendem ou desafiam conceitos considerados politicamente corretos, surge a possibilidade de intervenção do poder público como um mediador talvez indesejado. Sinal de alerta.
Primeiro, veio a reação do governo federal em relação a uma série de comerciais da lingerie da marca Hope, estrelada por Gisele Bündchen. Resumidamente, a campanha vende a ideia de que, ao estourar os limites do cartão de crédito do marido ou bater, mais uma vez, seu carro, a saída mais segura de uma mulher é recorrer às calcinhas e aos sutiãs da grife, com design bastante ousado e sexy, para evitar uma crise conjugal.
Além de reforçar a ideia, consolidada pelo discurso empedernido do patriarcalismo, de que mulher só sabe gastar e não dirige bem, a campanha também reafirma, subliminarmente, o conceito de que as melhores armas femininas ainda são a sedução e o sexo. Segundo a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República, a propaganda com Gisele "promove o reforço do estereótipo equivocado da mulher como mero objeto sexual de seu marido e ignora os grandes avanços que temos alcançado para desconstruir práticas e pensamentos sexistas".
Mas as reclamações acabaram não dando em nada. O Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) arquivou, em decisão unânime, a representação contrária à criação da agência Giovanni+DraftFCB.
Para o jornalista curitibano Leandro Narloch, autor dos best-sellers Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil e Guia Politicamente Incorreto da América Latina, publicados pela editora Leya e que já somam mais de 300 mil exemplares vendidos, não cabe ao Estado, mas ao próprio mercado, se autorregular, com o público decidindo o que é ou não de mau gosto. O escritor diz que, a partir do momento em que os governos trazem para si a responsabilidade de decidir o que deve ou não ser veiculado, abre-se um precedente perigoso. "É a volta da censura. E ninguém quer isso."
Narloch, 30 anos, formado em Jornalismo pela UFPR e ex-aluno de instituições públicas como o Colégio Estadual e o Cefet-PR, argumenta que o poder estatal não tem que se meter nessas questões. Ele defende o direito de todos falarem o que bem entenderem e arcarem com as consequências, citando como exemplo o caso, também recente, envolvendo o comediante Rafinha Bastos.
Piada
Há algumas semanas, o humorista disse no programa CQC (Band), do qual é participante fixo, que "comeria" a cantora Wanessa Camargo e seu bebê (do qual ela está grávida) se tivesse a chance. O comentário, uma piada entre muitas que integram o script da atração, que transita entre o jornalismo e o humor rasgado, gerou desconforto e resultou na suspensão de Bastos. Por fim, Wanessa e o marido, o empresário Marcus Buaiz, decidiram entrar com um processo contra o comediante, numa ação penal que pede indenização por danos morais. Ele ainda voltaria ao olho do furacão ao fazer, em uma de suas apresentações de stand-up comedy, comentários sobre a participação do ator Fábio Assunção no novo comercial da Nextel. Rafinha disse que havia coerência no anúncio, uma vez que o galã global, que teve problemas com o uso de drogas, estaria ajudando a vender um sistema de comunicação muito apreciado por traficantes.
A piada voltou a levantar a discussão sobre até onde devem ir os limites de um comediante ao fazer graça com a vida (e a desgraça) alheia. "Nos Estados Unidos, todos os comediantes, inclusive na tevê aberta, fazem piadas com políticos, atores, cantores, celebridades. Isso é considerado normal e parte do jogo democrático." Proibi-los, para Narloch, seria cercear a liberdade de expressão e uma péssima lição. "Quem não gosta, não concorda, não precisa assistir e tem todo o direito de reclamar, fazer até piquete se quiser, mas proibir é censura."
A cartunista Pryscila Vieira, 32 anos, que assina uma tira semanal no jornal Folha de S. Paulo, diz que, embora não goste do estilo de humor de Rafinha Bastos, a que ela diz faltar "sutileza", defende seu direito de expressão. Ela lembra as declarações feitas pelo comediante em seu show de comédia stand-up e reproduzidas na revista Rolling Stone. Na ocasião, o humorista disse que "toda mulher que reclama que foi estuprada é feia, e que o homem que cometeu o ato merecia um abraço, e não cadeia". "Issó é simplesmente horrível. Não é humor", diz Pryscila.
Narloch que presenciou a mesma piada ao vivo, em um dos shows de Bastos, conta que, naquele momento, se sentiu muito mal ao ouvir as pessoas rindo ao seu redor. "Parece a história da criança que faz um pum em público, e isso é interpretado como piada. É preciso saber separar humor de mera grosseria, o que foi o caso dessa piada. Na hora, eu pensei: Não acredito que ele disse isso."
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