Paraty (RJ) - O motivo de haver tantas teses e dissertações sobre a literatura de João Gilberto Noll é um mistério até para ele. A erotização extrema, o fluxo de consciência, os personagens desfocados são questões que têm sido muito debatidas na academia. Nesta entrevista à Gazeta do Povo, concedida na pousada em que se hospedou em Paraty (RJ), durante a festa Literária Internacional (Flip), o escritor "pensa alto" sobre o assunto na tentativa de elucidar a paixão de alunos e professores por ele.O que o senhor está escrevendo no momento?
Um romance que considero uma espécie de síntese de tudo que já fiz, com o mesmo personagem que aparece em vários deles. Não há exatamente uma continuidade, já que num momento ele é escritor, em outro, ator, em outro, vagabundo... Agora ele é um professor de português para estrangeiros. Acho que o livro é uma homenagem à língua portuguesa. Tenho dois títulos provisórios, Virilidade e Aparição.
Por que Aparição?
No meu livro A Céu Aberto, um jovem dramaturgo tem uma teoria sobre o Teatro da Aparição, e meus leitores dizem que já viram essa preocupação em outros lugares. É uma escrita que não se preocupa com a psicologia dos personagens, ela almeja personagens que apareçam de repente. Como numa aparição.
Isso difere do seu trabalho até hoje, que tem a ver com a psicologia...
Mas não com uma psicologia de causa e efeito, preocupada em saber se o cara está fazendo isso ou aquilo porque sofreu algo na infância. É muito mais uma espécie de celebração do aqui e agora. Acho que isso não é tão psicológico, a não ser por adentrar a alma humana, onde as pontes entre o personagem central e o mundo real são muito tênues, muito frágeis. Como eu poderia chamar? O termo me foge com frequência quando penso em literatura. Não posso falar muito, porque estraga... O que eu escrevo é algo que não sei aonde vai dar. A escrita é uma aventura, sem que você saiba para onde vai, se é perigoso ou não... O mundo de dentro dos meus personagens realmente é psicológico, e muito maior do que o mundo de fora, o que os leva a serem muito contemplativos. Eles não podem ter uma relação imediata, abrupta, com o mundo real, precisam se preparar. E são rechaçados por serem tão contemplativos. Num mundo onde a produção ininterrupta é exigida de todo cidadão, é difícil ser contemplativo.
O senhor esteve recentemente em Portugal e até dormiu na cama de Fernando Pessoa. Agora, faz uma homenagem ao idioma português. Como se dá essa influência na sua obra?
Camões para mim foi tudo. Não sinto prazer em qualquer outra coisa na língua portuguesa quanto com Camões. Falo da lírica, sobretudo dos sonetos. Aquilo é pedra, é mármore, é a perfeição em vida. E as questões que me preocupam são aquelas, a dificuldade de se amar, a brevidade da vida para tão grande amor, que geralmente não é um sentimento realizado. São esses os temas de que gosto, a forma, a estrutura, a perfeição.
Existe a perfeição?
Na língua portuguesa é Camões... quer dizer, claro que não existe, porque você está sempre com sede, quer mais e mais, a sede não estanca. Isso é do ser humano, uma sede pela utopia. Mas o que chega mais perto é Camões, até mais do que Fernando Pessoa. Estive em Portugal para participar de um evento literário e me falaram da casa de Pessoa. Dormi uma noite lá, mas não senti nada de especial.
Esperava sentir?
Não. Para mim o que interessa é a obra, nunca tive muita idealização dos homens e dos artistas que amo.
E no Brasil, com quem sua obra dialoga?
Não sou muito original nos meus gostos, gosto dos titãs. Drummond, Mário Quintana, gosto muito de Dalton Trevisan, na prosa, e, sobretudo, de Clarice. Sou muito devoto dela.
Seu trabalho tem um pouco deles?
Eu acho que sim.
Existem inúmeras dissertações de mestrado e teses de doutorado sobre sua obra. Por que foi tão bem aceito pela academia, e tão rápido?
O que existe de dissertações e teses sobre meu trabalho acho uma coisa... eu não entendo muito bem por quê. É muita coisa.
Talvez porque seja uma maneira de estudar o contemporâneo. Eu me considero um escritor do inconsciente: não tenho muito plano do que vou escrever, de que área quero me ocupar. Mas, sem intenção, acabo lidando muito com o contemporâneo. Não há muito obstáculo entre eu e a história presente. Eu e Clarice lidamos muito com a dificuldade de expressão, e a tentativa de traduzi-la. Eu não sei exatamente por que sou tão estudado na academia. Estava tentando elucidar para mim mesmo... Tenho muita influência do cinema, mas outros têm essas veias abertas, como Rubem Fonseca e Raduan Nassar. Sou um escritor da linguagem, o que me move é isso, muito mais do que assuntos e temas. Depois é que vou tentar entender qual o tema que estou pegando e quais são minhas obsessões. Sou um escritor de obsessões, não tenho preocupação em variar muito a temática.
Quais teses sobre seu trabalho mais lhe interessaram?
As mais interessantes são aquelas que tratam do eros, porque sou um escritor de erotização muito forte, a começar pela própria língua portuguesa: a língua como fator erógeno. Tenho impressão de que isso favoreceu a entrada do meu trabalho na universidade, que era tão encastelada, e os apelos carnais são muito fortes na contemporaneidade. Então acho que a academia precisou depor suas armas e aceitar esse discurso, de um erótico um pouco ultrajado, periférico. Tenho impressão de que o desejo para se estudar meu trabalho veio sobretudo dos alunos. Me dei conta conversando contigo!
Seu leitor é jovem?
Acho que uma boa parcela, sim.
E como desenvolveu esse estilo?
Comecei cantando, para mim a literatura vem da música. Hoje eu invejo muito o trabalho do músico porque ele não precisa necessariamente materializar ideias, com exceção da letra. Não é um trabalho tão intelectivo como a literatura, porque quando você pega a palavra, ela já está inflamada pelo uso muito corrente. É quase algo ininterrupto. Por isso mesmo, minha literatura tem uma demanda grande pelo silêncio. A música é uma viagem muito mais em cima do signo, e isso eu acho uma delícia. O que me move são movimentos musicais, mais do que assuntos. É uma questão de sintaxe, que é o que dá ritmo à coisa. Ou ela é muito voluptuosa, ou alongada. Eu escrevo períodos que ocupam mais de uma página, e, às vezes, só uma palavra, que dá um staccato.
Ser considerado difícil alguma vez foi uma preocupação? Pensou em "facilitar"?
Nunca passou pela minha cabeça. Não vejo por que ampliar o número de leitores... essa expectativa não necessariamente faz minha cabeça.
O senhor não tem exatamente um plano de carreira de escritor...
(Risos) Não. Sei que não vou saber fazer algo mais inteligível. Não é a minha. Não tenho vocação para isso.
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