São Paulo (SP) Estrelas, bonequinhos que aplaudem de pé ou dormem sem cerimônia diante da tela. Um, dois, três Gs. Os jornais e revistas brasileiros, assim como grande parte das publicações internacionais que têm uma seção destinada a cinema, procuram orientar o leitor dando aos filmes uma cotação, uma nota. No fundo, querem dizer se o filme merece ser visto, se vale o tempo e o dinheiro do espectador.
Embora façam uso desse recurso já consagrado, a maior parte dos críticos de cinema no fundo se sente desconfortável com o grau de simplificação representado pelo método. Consideram-no reducionista demais. Outros vão mais longe ainda: chamam-no de "flagelo".
O termo parece um tanto exagerado, mas vamos lá. No dicionário, flagelo, usado enquanto metáfora, significa sofrimento, tortura, desgraça, praga, peste, calamidade, coisa ou pessoa que incomoda. Pois é, a mera utilização de uma nota ou cotação parece incomodar e muito quem escreve sobre cinema e vê toda uma reflexão a respeito de uma obra reduzida, sem pudor, a uma cotação, que, para boa parte dos leitores, pode ter maior significado do que o próprio texto.
Sinal dos tempos? Talvez. Na última quarta-feira, um seleto grupo de críticos se reuniu, dentro da programação de debates promovidos pelo Clube da 31.ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que acontece até o próximo fim de semana na capital paulista, para discutir os rumos da crítica cinematográfica brasileira e internacional. Participaram Inácio Araújo (Folha de S. Paulo), Luiz Zanin Oricchio (O Estado de S. Paulo), Leon Cakoff (fundador e diretor geral da Mostra) e Álvaro Machado, atualmente responsável pela edição e organização de vários títulos sobre cinema publicados pela Cosac Naify.
Dentre os nomes convidados, uma ausência foi sentida: a do crítico Serge Toubiana, que trabalhou para a revista Cahiers de Cinéma e atualmente dirige a lendária Cinemateca Francesa, em Paris. Estava prestes embarcar rumo a São Paulo, quando passou mal no aeroporto Charles de Gaulle, na França, e teve de cancelar sua viagem. Uma pena.
A ausência de Toubiana no debate, contudo, foi parcialmente compensada pela provocação suscitada por afirmações feitas à jornalista Ana Paula Souza, da revista Carta Capital, publicada semana passada. Entre outros comentários, Toubiana disse: "A crítica não tem mais influência sobre um sucesso. A crítica não tem mais influência sobre o público por razões diversas. A mídia mudou, a internet permite que se saiba muita coisa sobre um filme sem ler uma crítica. Existe um outro sistema de informação, que passa pela publicidade, capaz de tornar as coisas visíveis. Hoje, a crítica tem influência apenas sobre a crítica e, infelizmente, se alimenta disso. Mas isso não conta, ela precisa ter influência sobre mais gente. E a única saída seria que os críticos reaprendessem a amar o cinema, sem pedantismo." Ele complementa: "Às vezes, tenho a impressão de que os críticos viram o filme antes de vê-lo. O filme já está catalogado na sua cabeça".
O comentário de Toubiana, autor de uma brilhante biografia de François Truffaut, que também foi crítico, um dos mais importantes da história da revista Cahiers de Cinéma, serviu de gatilho para uma agitada e interessante discussão entre os participantes do evento promovido pela Mostra de São Paulo.
Para Inácio Araújo, houve um momento na história do cinema, sobretudo do norte-americano, em que as estratégias de marketing promovidas por Hollywood se sobrepuseram ao peso que a crítica cinematográfica tinha junto à opinião pública. Isso, segundo ele, aconteceu na década de 80, quando a era dos blockbusters, iniciada em 1977 com o estrondoso sucesso de Guerra nas Estrelas, de George Lucas, começa a se consolidar.
O espectador passou a ser bombardeado de forma sistemática e massiva. A tal ponto que, quando o filme finalmente chega aos cinemas, ele já não sente a necessidade de ler mais uma linha sobre a produção. Ele pensa já saber tudo que precisa. E a crítica se torna um luxo dispensável.
Zanin Oricchio, por sua vez, constata que, por se tratar também de um negócio de proporções bilionárias, o cinema é, hoje, mais do que nunca, tratado como bem de consumo e não muito barato para o bolso do brasileiro médio. O que explicaria a necessidade de os veículos se utilizarem de diferentes métodos de classificação qualitatativa dos filmes, para, em última instância, orientar o "consumidor" em sua compra.
Esse raciocínio, embora considerado procedente, é lamentado por Cakoff, que por muitos anos foi colaborador da Folha de S. Paulo. O criador da Mostra de São Paulo, que percorre anualmente festivais de cinema ao redor do mundo, assistindo a centenas de filmes das mais diversas nacionalidades, diz que limitar ou reduzir a leitura de uma obra a artfícios como "gostei/ não gostei" ou cotações é uma excrescência.
"Para quem realmente gosta de cinema, não existe filme ruim. Tudo que se vê serve, pelo menos, como parâmetro para se falar de outras obras assemelhadas, sobre o mesmo tema, ou que abordem o mesmo universo", afirma.
Crise
Mas e a crítica? Existe, de fato, uma crise. Toubiana afirma que, além de ter perdido espaço editorial nos últimos anos, o textos opinativos sobre filmes padecem de falta de paixão. Estão, segundo ele, contaminados pelo academicismo, pelo saber difundido pelas universidades, que por ser elitista, cifrado e pedante demais, não atinge o público. Atualmente, o espectador, salvo raras exceções, prescinde da crítica por não se comunicar com a forma como ela se apresenta a ele.
Zanin concorda com o francês, dizendo que já não é possível se escrever sem pensar no interlocutor, em quem vai ler seus textos, sejam eles publicados no jornal em que trabalha ou em um blog. Para o crítico do Estado de S. Paulo, a melhor crítica, seguindo os passos de um François Truffaut, por exemplo, é aquela que se assume enquanto forma de escritura literária, que enfrenta o desafio de apresentar em um texto elaborado, criativo, instigante e não-formulaico, e desperta no leitor o desejo da leitura e sua posterior reflexão. E seja, sobretudo, acessível sem ser medíocre. "E não acho que o discurso universitário, o academiscismo, seja o caminho", arremata.
Para Cakoff, a crítica deve servir como uma espécie de rampa que facilite o acesso do leitor, do espectador, à reflexão, às idéias propostas pelo filme.
Embora admita que tenta não pensar em quem vai ler seus textos "Senão, não conseguiria escrever" , Araújo concorda com Zanin e Toubiana no que diz respeito ao necessário distanciamento do academicismo rechaçado pelo francês, que afirma: "A universidade dá mais conhecimento, mas o que conta, no fim, é a intuição, o olhar, a inteligência crítica. A crítica não é algo formal, técnico. Freqüentemente, quando leio os Cahiers, vejo críticos de diploma, que parecem escrever para os professores e não para os leitores".
O crítico da Folha, entretanto, faz uma análise interessante e surpreendentemente otimista sobre o momento atual do que se escreve sobre cinema no Brasil. Ele defende a idéia de que, enquanto a produção cinematográfica nacional "não é muito boa", nunca se escreveu tanto e tão bem sobre filmes, conferindo à internet esse mérito de abrir novas portas. "Hoje, além de qualquer pessoa poder escrever o que pensa, criando blogs, colaborando com inúmeros sites, não há limitação de espaço editorial na rede. Isso há de suscitar o surgimento de novos talentos."
O editor viajou a convite da Mostra.
E se Trump sobretaxar o Brasil? Entenda os impactos sobre nossa economia
Decretos, deportações e atrito com governo Lula: a primeira semana movimentada de Trump
O Pé-de-Meia e a burla do governo ao orçamento
De presidenciável a aliada de Lula: a situação dos governadores do PSDB em meio à fusão da sigla
Deixe sua opinião