"Os brasileiros descobriram a virtualidade anos atrás. Eles nunca sabem quando estão entrando na tela e quando estão saindo", escreveu a ensaísta Alma Guillermoprieto na revista americana New Yorker, em meio a repercussão internacional do assassinato da atriz Daniela Perez, no ano de 1992. Para ela, chamava a atenção o fato de que o crime causou mais comoção na sociedade brasileira do que o impeachment do presidente Fernando Collor de Mello, ocorrido no mesmo período.

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"É claro que eu não concordo com isso, pois é um jeito de ver o Brasil como um lugar exótico e selvagem", diz a antropóloga Esther Hamburger, autora do recém-lançado livro O Brasil Antenado – A Sociedade da Novela (Jorge Zahar Editor, 196 págs., R$ 36), cuja introdução resgata justamente o caso Daniela Perez. Na época, falou-se muito na confusão entre ficção e realidade, já que o autor da barbaridade, segundo a Justiça, foi o ator Guilherme de Pádua, intérprete do namorado da personagem vivida por Daniela na novela escrita por sua mãe, Glória.

Mas o curioso é que muitos brasileiros pensam como Alma Guillermoprieto. "Isso é típico de quem vê a tevê como algo externo, fora da realidade. Como se ela pairasse acima das coisas e pudesse apenas dominar as pessoas ou sofrer algum tipo de resistência por parte delas. E o que eu estou querendo dizer é justamente o contrário, que a tevê é construída a partir de diversos mecanismos, os quais eu tento mapear no livro", afirma Esther, professora do departamento de Cinema, TV e Rádio da USP (Universidade de São Paulo) e colaboradora do jornal Folha de S. Paulo.

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O Brasil Antenado investiga o universo dos folhetins eletrônicos dos anos 70 aos 90. Trata de temas como a indústria televisiva, pesquisas de audiência, público-alvo e a relação da teledramaturgia com os diferentes momentos políticos brasileiros. Mas vai além: analisa a novela como uma espécie de espaço de discussão dos grandes temas nacionais. E, conscientemente ou não, acaba contando a história recente do país.

Graduada em Ciências Sociais e com mestrado em Sociologia, Esther estudou os movimentos sociais urbanos antes de se interessar por televisão. Seu foco mudou quando percebeu que esses grupos prestavam muita atenção na mídia, além de se comunicar com outros movimentos semelhantes por meio dela. Quando partiu para os EUA, no fim dos anos 80, com o objetivo de cursar o doutorado em Antropologia na Universidade de Chicago, estava decidida a elaborar uma tese sobre a tevê norte-americana, porém logo desistiu. "A televisão de lá não me estimulou, pois não tem o mesmo papel que a daqui", conta.

A virada aconteceu com a chegada de uma fita de vídeo contendo capítulos da novela Vale-Tudo (1988), enviada por amigos brasileiros. Esther, de imediato, ficou fascinada com a vinheta de abertura, que mostrava os contrastes do Brasil. Imagens de praias, florestas e cidades históricas se revezavam com flagrantes de pobreza e violência. Como se os autores e diretores deixassem claro que a trama trataria o país de forma mais crítica, em detrimento da visão turística dos folhetins tipo exportação. "Quem via a novela todo dia não notava a força da vinheta. Só que, visto de longe, aquilo tinha um impacto imenso", lembra a pesquisadora. E como a Antropologia trabalha com a ambigüidade de estudar as situações "de dentro e de fora", estava feita a cama para sua tese de doutoramento.

Obra aberta

Para Esther, uma das principais características da telenovela é sua produção no esquema de obra aberta – ou seja, que pode, e deve, ser modificada enquanto estiver no ar. Essa faceta permite a assimilação de discussões atuais, que devem ser rapidamente incluídas no texto pelo autor. "O novelista é um sujeito com uma responsabilidade impressionante. Ele recebe pressões de todos os lados, do departamento comercial da emissora à empregada que acompanha a novela e dá sua opinião. Ele é um catalizador dessas pressões, e parte de seu talento vem da habilidade de fazer a interlocução entre os diversos setores envolvidos", afirma.

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Há, inclusive, inúmeros casos de folhetins que mudaram radicalmente de rumo por conta da rejeição inicial da audiência. Um exemplo recente é o de América, radicalmente transformada pela autora Glória Perez após as primeiras pesquisas de opinião. "É um caso inédito, porque a autora chegou a interferir na direção e até mudou a música de abertura", analisa a antropóloga.

Glória Perez, aliás, recebe destaque em um dos capítulos de O Brasil Antenado, cujo tema é o advento das "novelas de intervenção", aquelas que desenvolvem campanhas de utilidade pública ou se conectam de forma mais direta ao telespector a partir de situações reais. Glória, por exemplo, já tratou em suas tramas de assuntos como o desaparecimento de crianças, a doação de órgãos e o problema das drogas.

De acordo com Esther, a alusão a temas do momento faz parte da tradição do folhetim, iniciada no século 19. No entanto, a disposição de interferir na realidade é recente, e ainda não pode ter suas conseqüências analisadas. "É uma fórmula interessante, mas que deve ser muito bem dosada. Tenho receio de que essas campanhas possam, no futuro, desagradar parte da audiência. E o grande trunfo da novela é exatamente sua capacidade atrair públicos tão heterogêneos", opina.