Certas figuras públicas fizeram da expressão "político íntegro" algo próximo de um paradoxo uma idéia tão fantástica quanto viagens no tempo.
É difícil, mas tente imaginar um político que recusa aumento de salário por décadas. Um homem que coloca os interesses do país antes dos seus e dos de seu partido.
Alguém que viaja o mundo muitas vezes representando o Brasil, mas prefere pagar as despesas do próprio bolso, sem nunca permitir que qualquer gasto pese sobre o dinheiro público.
Uma figura comprometida com a nação ao ponto de ignorar suas vocações e desejos a fim de desempenhar um papel que julga essencial para o bem dos brasileiros. E o faz durante toda a vida.
Agora, pegue essa imagem e coloque nela barbas longas, olhos azuis, testa larga e uma coroa. Você tem d. Pedro II.
O "imperador tropical" ressurge em biografia do historiador José Murilo de Carvalho, lançada agora pela Companhia das Letras como parte da coleção Perfis Brasileiros.
O livro se insere no que parece ser um esforço coletivo por resgatar a História do Brasil Imperial, visível sobretudo na última década. Para ficar na mesma coleção de figuras nacionais perfiladas, Isabel Lustosa escreveu sobre D. Pedro I no ano passado.
Lilia Moritz Schwarcz publicou As Barbas do Imperador (Companhia das Letras) em 1998, um estudo iconográfico minucioso sobre d. Pedro II. Um ano depois, o inglês Roderick J. Barman escreveu Citizen Emperor Pedro II and the Making of Brazil (Stanford University Press). Os dois livros ganham destaque nas indicações bibliográficas organizadas por Carvalho ao final de D. Pedro II citando pelo menos outra dezena de títulos editados ao longo dos últimos dez anos e vários outros do século 19 para cá.
Na biografia nova, o subtítulo é, precisamente, Ser ou Não Ser. A frase se refere à agonia pessoal que o governante, aliás Pedro de Alcântara João Carlos Leopoldo Salvador Bibiano Francisco Xavier de Paula Leocádio Miguel Gabriel Rafael Gonzaga de Bragança e Habsburgo (1825 1891), viveu durante o período em que ocupou o trono brasileiro: a de ser imperador quando, na verdade, gostaria de ser professor, ou viajar o mundo e se dedicar às artes e às ciências.
Ao analisar correspondências e diários, Carvalho descreve Pedro II como um homem dividido entre o dever e o desejo, priorizando sempre o primeiro. Esse conflito, mais uma infância e adolescência tumultuadas (confira artigo do historiador Wilson Maske na página 2 desta edição), deram ao imperador um ar taciturno, melancólico. Para qualquer pessoa que o conhecia um pouco, sua tristeza era indisfarçável.
Mesmo contrariado, mantinha uma noção rigorosa do dever que havia assumido. Trata-se do líder que pediu para, depois de morto, ser enterrado com a cabeça repousando sobre terra brasileira. Uma das 38 imagens reunidas no encarte de 16 páginas que faz parte da biografia, mostra d. Pedro II morto e, sob a almofada que lhe serve de apoio, um livro acerca do Brasil.
O imperador detestava burocracia, defendia o meio ambiente, a liberdade de imprensa, investia em pesquisas e em obras de arte. Ele era o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) da época, pois, durante o Segundo Reinado, manteve 151 bolsas com dinheiro de sua dotação de 800 contos por ano modesta para os padrões de então.
Todas essas características dão a Pedro de Alcântara traços de visionário, alguém do século 19 que poderia se encaixar muito bem em tempos atuais. Carvalho admite que a biografia soa "favorável" ao monarca. Na verdade, excluindo algumas obras panfletárias na linha de O Libelo do Povo (1849), de Francisco de Sales Torres Homem sob o pseudônimo Timandro , é difícil encontrar pesquisadores que sejam muito críticos ao abordar a história de Pedro II.
"A volta de homens públicos exemplares do passado, em geral, tem a ver com a falta deles no presente", diz Carvalho em entrevista ao Caderno G (leia mais na página 3), explicando as razões para o interesse crescente em três figuras-chave para a identidade nacional: Pedro II, Getúlio Vargas (1882 1954) e Juscelino Kubitschek (1902 1976).
"Ele (Pedro II) não tem o apelo no imaginário nacional que têm Getúlio e JK", afirma Miriam Dolhnikoff, autora de O Pacto Imperial (Globo, 2005). No entanto, de acordo com a pesquisadora, "dimensionar o papel do imperador no jogo político do século 19 tem sido um desafio para os historiadores que procuram compreender nossa história política".
Os bastidores da "corte mais triste do universo" é tema para diversos capítulos da biografia que rebatem uma das críticas mais comuns ao imperador tropical a de ter sido manipulado pelos partidos da época. "É um dos maiores absurdos que já ouvi", diz a professora Roseli Boschilia, da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Embora sua área de pesquisa esteja ligada à imigração portuguesa e não domine a história do império brasileiro, ela conhece e admira o trabalho de José Murilo de Carvalho.
Serviço: D. Pedro II Ser ou Não Ser, de José Murilo de Carvalho (Companhia das Letras, 296 págs., R$ 37).