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Mia Couto explora em A Confissão da Leoa sua voz de escritor, longe do estilo poético que marcou seus livros anteriores | Bel Pedrosa/Divulgação
Mia Couto explora em A Confissão da Leoa sua voz de escritor, longe do estilo poético que marcou seus livros anteriores| Foto: Bel Pedrosa/Divulgação
  • Lançamento:A Confissão da Leoa. Mia Couto. Companhia das Letras, 256 pág. R$ 39,50. Romance. GGGG

De tudo se faz romance na África para o escritor moçambicano Mia Couto. Seu último livro, A Confissão da Leoa, partiu de um caso vivido pelo autor em 2008, quando oficiais de campo da empresa Impacto Ltda., na qual trabalha com estudos de impacto ambiental, foram designados para uma missão no norte de Moçambique, onde uma onda de ataques de leões à população preocupou as autoridades. A empresa petrolífera para quem estavam prestando consultoria, portanto, enviou dois caçadores ao local para dar cabo aos leões.

A trama da ficção proposta pelo escritor em seu décimo terceiro romance é similar. Um ataque de leões à aldeia de Kulumani faz como vítima a irmã do meio de uma família destruída, da qual resta apenas a primogênita, Mariamar. Por conta das mortes, o caçador Arcanjo Baleiro, oriundo de uma linhagem de caçadores para quem matar é uma arte honrada com suas nuances e ponderações, é enviado à vila e contrata o pai de Mariamar, Genito Mpepe, como pisteiro para encontrar o caminho dos felinos. Acompanha a expedição ainda o escritor Gustavo Regalo, inspirado no próprio autor, que deseja relatar os acontecimentos para o seu novo romance.

Como um livro típico de Mia Couto, porém, há mais intenções ocultas por baixo do acontecimento. A mãe de Mariamar teme que o caçador leve embora sua única filha viva, de quem já salvou a vida no passado, e, enquanto moradores suspeitam que as mortes dos leões são encomendadas por feiticeiros fazedores de leão, histórias de abuso e opressão masculina sobre as mulheres da aldeia são reveladas aos poucos, dando a entender que combater o inimigo externo sempre é melhor pela conveniência, e fechar os olhos para o mal que mora ao lado é uma forma de morrer sem de fato deixar o corpo.

A inferioridade feminina na civilização machista é exemplificada na figura do próprio leão. Embora seja a fêmea a responsável pela caça, é o macho morto que estampa a fotografia dos jornais, por causar mais impacto e passar credibilidade à empreitada da caça. Assim como na sociedade dos felinos, a mulher em Kulumani move as engrenagens da aldeia em silêncio, consentindo a humilhação e o abuso dos homens sem se permitir qualquer felicidade. Em um dos diálogos mais improváveis do livro, Mariamar declara: "A felicidade e o amor se parecem. Não se tenta ser feliz, não se decide amar. É-se feliz, ama-se". E depois, indaga a seu amado, que lhe promete uma vida boa: "Quem lhe disse que quero ser feliz?".

Mais sóbrio em sua prosa poética e menos dado a neologismos, Mia Couto trabalha em A Confissão da Leoa algo que lhe é caro na carreira de romancista: a consolidação de sua voz de escritor, por anos escondida sob seu estilo característico e forte. Com diálogos mais poéticos do que funcionais, mas numa narrativa que alterna fluxos de consciência e descrição factual, A Confissão da Leoa é um de seus livros literariamente mais bem resolvidos. E ainda que pese um pouco a mão nas pequenas filosofias e prescinda da unidade cultural que criou o imaginário de um de seus ídolos literários, o baiano Jorge Amado, Mia Couto vai, aos poucos, descortinando o mundo metafísico dos recônditos afastados de Moçambique, dando forma a uma voz, em sua totalidade, africana.

Classificações: GGGGG Excelente. GGGG Muito bom. GGG Bom. GG Regular. G Fraco. 1/2 Intermediário. N/A Não avaliado.

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