Para assistir comendo (ou não)
Leia abaixo algumas sugestões de filmes que falam de gastronomia
- Comer, Beber, Viver, de Ang Lee
- A Comilança, Marco Ferreri
- A Festa de Babette, de Gabriel Axel
- O Leopardo, de Luchino Visconti
- Como Água para Chocolate, Alfonso Arau
- Vatel Um Banquete para o Rei,de Roland Joffé
- Chocolate, de Lasse Hallstrom
Pratos de porcelana díspares, copos com o brasão do Rei de Nápoles e das Duas Sicílias, uma gigantesca sopeira de prata encimada por um leopardo dançante e um impecável serviço. Esta era a rotina à mesa na Villa palermitana do Príncipe de Salina, don Fabrizio, personagem principal de O Leopardo, romance de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, escritor siciliano e nobre também na origem.
O crítico italiano Giancarlo Buzzi assinala como temas principais da obra, a paisagem, a história, o amor e a morte através dos quais Lampedusa expressa a sua poesia. O tema dos alimentos está contido no grande tema da paisagem que não consiste em um mero cenário harmonioso e sim um elemento primário da narração, significante e explicativo. A mesa, lugar de descanso, de encontro e de reunião resulta como uma grande metáfora primaria do viver, e o alimento, que invade todas as estruturas da vida, mostra as conexões profundas existentes entre os comportamentos e as tradições e se torna, sim, um instrumento de autoconsciência, revelador de sensibilidade e, inclusive, veículo de comunicação.
A presença da alimentação na obra desse escritor siciliano funciona como um elemento de verossimilhança. As diferentes ocasiões de estar à mesa constituem momentos narrativos fortemente significantes. A descrição de almoços, de jantares, de recepções e de pequenos lanches, a apresentação dos alimentos e a sua distribuição aos comensais, são grandes alegorias que ilustram os principais temas da obra: a sensualidade dos personagens, o poder de uma burguesia em franca decadência, e o mudar que não muda nada.
Como ninguém, Lampedusa soube descrever os hábitos da aristocracia siciliana, ele digno representante da sua classe, neto de príncipe, cultor das artes e das ciências, principalmente da astronomia. Segundo a crítica especializada, o personagem don Fabrizio foi inspirado em seu avô, o príncipe de Lampedusa e no cinema foi interpretado por Burt Lancaster na primorosa direção de Lucchino Visconti.
O personagem em questão era um grande apreciador da boa mesa e um homem bastante sensível aos problemas políticos que o seu reino enfrentava no imediato período de pós Unificação do recém criado Reino da Itália. Devoto e fiel súdito de Ferdinando de Bourbon, rei de Nápoles e das duas Sicilias, Salina percebe as mudanças políticas em curso e mais ainda, a decadência da velha aristocracia que estava deixando o seu lugar e perdendo o prestígio frente à emergente burguesia constituída de novos ricos endinheirados sem savoir faire. A sensibilidade do príncipe era tão grande que, intuindo a ruína, arranja o casamento de seu sobrinho com a filha do novo prefeito do "seu" feudo, a cidadezinha de Donnafugata, no interior da ilha. A belíssima jovem era a única herdeira da fortuna que o pai, um tosco ex-agricultor, vinha acumulando há alguns anos. E o pedido de noivado de Tancredi (interpretado nas telas por Alain Delon) com Angélica (Claudia Cardinale no esplendor de sua carreira), como qualquer rito social de importância, se deu à mesa da casa do príncipe.
"O príncipe tinha demasiada experiência para oferecer a convidados sicilianos de uma cidade do interior um jantar que começasse com um potage, e rompia as regras da alta culinária com facilidade porquanto ia de encontro aos seus gostos pessoais. Mas as informações acerca do bárbaro costume estrangeiro de servir uma água rala como o primeiro prato haviam chegado com excessiva insistência às personalidades de Donnafugata para que não estremecessem de leve temor ao inicio de cada um daqueles jantares solenes. Portanto, quando três camareiros de peruca empoada, trajados de verde e ouro entraram, cada qual trazendo uma imensa travessa de prata que continha um alto empadão de macarrão (timballo di maccheroni), somente quatro da vinte pessoas presentes se abstiveram de manifestar uma grata surpresa: o príncipe e a princesa porque já o esperavam, Angelica por afetação e Concetta (filha do príncipe) por falta de apetite.
Bons modos à parte, o aspecto daqueles imensos empadões bem justificava estremecimentos de admiração. O ouro polido do invólucro, a fragrância de açúcar e de canela que dele emanava eram apenas o prelúdio da sensação de delícia que evolava do seu interior quando a faca fendia a casca: libertava-se inicialmente um vapor carregado de aromas, vislumbravam-se em seguida os fígados de frango, os ovinhos duros, os filetes de presunto, de frango e de trufas presos na massa untuosa, quentíssima dos macarrõezinhos curtos aos quais o caldo concentrado de carne conferia uma preciosa cor de camurça.".
A palavra timballo em italiano quer dizer tambor, a exata forma do prato que contém elementos diversos que acabam resumindo de maneira sucinta todas as civilizações que andaram por terras sicilianas ao longo de sua história. A canela vinda do Oriente, as trufas importadas do Norte da Itália de óbvia influencia francesa, o macarrão, o protagonista de uma das querelas mais importantes da história da alimentação, disputa de chineses e italianos (sicilianos e genoveses), o açúcar implantado na ilha por obra dos espanhóis. Estamos à frente de uma iguaria recheada de história e de riqueza e também de apurado paladar. O príncipe, um grande gourmet, algumas linhas após a descrição desta apoteótica refeição, não deixa de apontar que "embora tomado pela contemplação de Angélica, sentada à sua frente, conseguiu perceber, único em toda a mesa, que a demi-glace estava puxada demais e programou-se para dizê-lo ao cozinheiro no dia seguinte; os outros comiam sem pensar em nada e não sabiam que a comida lhes parecia tão deliciosa também porque uma aura sensual havia penetrado na casa".
Os prazeres do paladar e do olfato foram despertados por esse prato em todos os personagens e, sem dúvida, chegou a despertar o prazer erótico e a sensualidade, inundando a sala de jantar de fragrâncias de comida e do perfume de Angélica, provocando nos homens ali presentes uma reação inusitada defronte a beleza da jovem e do prazer visual provocado pelo alimento. Ao mesmo tempo, o exercício do poder por parte do príncipe, através da afirmação da sua nobreza representada pelo prato de timballo contrasta com a beleza brejeira da jovem siciliana. Apesar de muito bela, a moça representava a ascendente burguesia rural, rica porém desprovida de refinamentos. O timballo é um prato que não estava ao alcance dos camponeses e nem mesmo daqueles burgueses novos-ricos.
A aparente estranha combinação de sabores doces e salgados fechados dentro desta espécie de torta foi também protagonista do filme A Grande Noite (Big Night) do diretor ítalo-americano Stanley Tucci com Isabella Rossellini, Minnie Driver, o próprio Tucci, Marc Anthony e Tony Shalhoub. Na NovaJersey dos anos 50, dois irmãos imigrantes italianos, Primo e Secondo Pillagi são proprietários de um restaurante à beira da falência. Para resolver o problema, os dois resolvem preparar um suntuoso jantar de despedida do restaurante, cujo principal convidado é o cantor Louis Prima. E novamente o timballo ou tímpano sinônimos em italiano foi imortalizado, desta vez pelas câmeras de Hollywood.
Mas o nobre siciliano não se deliciava apenas com iguarias salgadas. Sua sensibilidade gastronômica era realmente grande. "No fim do almoço foi servida a gelatina ao rum. Era a sobremesa favorita de don Fabrizio e a princesa, grata pelo consolo recebido, havia tido o cuidado de encomendá-la de manhã cedo. Apresentava-se ameaçadora, com aquele seu feitio de torre apoiada nos bastiões e nas escarpas, com paredes lisas e escorregadias impossíveis de escalar, presidida por uma guarnição vermelha e verde de cerejas e de pistaches; era porém transparente e tremelicante e a colher afundava nela com facilidade surpreendente". A gelatina é apenas uma pequena amostra da rica e opulenta doçaria siciliana, impregnada de fortes traços orientais, árabes e bizantinos. Os doces realmente podem ser chamados de barrocos: eles são uma apoteose do açúcar e do mel, ricos de amêndoas e castanhas, perfumados de laranja e de cidra. São doces marcantes e se constituem num verdadeiro patrimônio da ilha encantada.
Mais uma vez, gastronomia, cinema e literatura dão as mãos e oferecem um grande espetáculo aos amantes das artes e dos prazeres da boa mesa.
(A tradução dos trechos citados de O Leopardo é de Marina Colassanti, Record, Rio de Janeiro, 2000).
Fabiano Dalla Bona é professor de Língua e Literatura Italiana na UFPR, mestre em Literatura Italiana pela USP (Universidade de São Paulo) e doutorando em Letras pela UFRJ (Universidade Federal do rio de Janeiro).
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