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Kafka com  Felice Bauer e, no detalhe, Milena  Jesenská: mulheres adoráveis que compreendiam os tormentos do escritor | Divulgação
Kafka com Felice Bauer e, no detalhe, Milena Jesenská: mulheres adoráveis que compreendiam os tormentos do escritor| Foto: Divulgação

"Kafka escreveu sobre eles (eventos implausíveis) como se estivessem inquestionavelmente ocorrendo ou houvessem ocorrido, com sua presumida verdade escorada em descrições cuidadosamente pormenorizadas. À medida que lemos, aceitamos sua realidade, do mesmo modo como, pouco antes de despertar, aceitamos nossos sonhos como reais. Uma consequência, fundamental para a arte de Kafka, é que no mundo que ele cria não há espaço para a surpresa. A família Samsa de A Metamorfose fica horrorizada e em choque ao ver que Gregor transformou-se num gigantesco inseto, mas nem o pai nem a irmã evidenciam algo parecido com espanto."

Trecho de O Mundo Prodigioso Que Tenho na Cabeça, de Louis Begley, traduzido por Laura Teixeira Motta.

  • No ensaio biográfico sobre Kafka, o escritor Louis Begley se baseia em cartas e diários.

Franz Kafka (1883-1924) era genial nos livros que escrevia e também nos esquemas que montava para se autossabotar. Ele se encantava por uma mulher, escrevia cartas obsessivamente e investia nelas uma quantidade incrível de tempo e inspiração. Quando a relação parecia prestes a ficar mais séria – e por séria entenda-se um mero encontro frente a frente –, ele demolia o sentimento que havia cultivado com esforço. E o demolia com talento.A incapacidade de se relacionar é uma das facetas de Kafka descritas por Louis Begley no ensaio biográfico O Mundo Prodigioso Que Tenho na Cabeça. Usando sobretudo a correspondência e os diários, o livro é quase um relatório sobre a personalidade do autor de A Metamorfose e O Processo.São raras as páginas que não têm uma citação e quase todas as citações são longas. A voz de Begley quase não aparece no texto – ele se dedica a costurar as referências, deixando Kafka falar por si mesmo. Quando o biógrafo fala, ele é contundente e chama o biografado de "molenga" ou censura sua incapacidade de usar melhor o tempo de que dispunha – algo que o próprio admitia. Observa ainda que Kafka era acomodado e tinha receio de sofrer privações, o que explica o fato de só se afastar do emprego como advogado num escritório de seguros quando o médico o obrigou a fazê-lo.

BiografiaÀs vezes, essa opção por deixar as citações falarem torna a leitura um pouco esquemática, semelhante a de um texto técnico. Isso é mais evidente nos quatro primeiros capítulos. O quinto e derradeiro destoa dos outros, analisa mais a fundo os livros de Kafka e dá espaço para Begley expor seu conhecimento e destrinchar a obra daquele que é um dos autores mais importantes da literatura em qualquer tempo.

"Se o livro que estamos lendo não nos acordar com uma pancada na cabeça, para que o estamos lendo?", escreveu Kafka, na tradução de Laura Teixeira Motta. "Precisamos de livros que nos afetem como um desastre, que nos angustiem profundamente, como a morte de alguém que amamos mais do que a nós mesmos, como ser banidos para florestas distantes de todos, como um suicídio. Um livro tem que ser o machado para o mar congelado dentro de nós."

Por citações como essa, o livro de Begley é valioso. O Mundo Prodigioso... tem a cadência de um documentário envolvente e cuidadoso. E Begley é o narrador. Funciona mais ou menos como fazia Jack Perkins na série Biografia, exibida pelo canal A&E.

Fuzilar

A percepção que Kafka tinha da literatura explica um bocado de sua própria produção. Assim como esperava ser fulminado pela leitura de um livro, procurou escrever histórias que fuzilassem os outros. Lendo o ensaio de Begley, é possível criar uma relação entre o que Kafka vivia e o que escrevia. A angústia experimentada ao entrar em contato com suas ficções é próxima daquela que se sente ao saber mais sobre a vida do autor. É preciso sentir compaixão pelo autor checo para não se irritar com as confusões que criava como ninguém. Confusões de sentimentos. Ele conseguia ser deprimente de várias formas.

Só foi sair de casa aos 40 anos de idade e o fez sob os protestos do pai e da mãe, que censuraram o rompante de independência. Ele passou a vida desejando casar e formar uma família, com filhos e tudo, mas não conseguia imaginar um meio de aliar o desejo com a realidade. Preferia defender a solidão e o silêncio da escrita com todas as forças.

Mesmo confuso, teve a sorte de conhecer mulheres adoráveis, que, em geral, tiveram muita paciência com ele, além de admirá-lo e respeitá-lo. Felice Bauer talvez tenha sido a que mais sofreu com as idas e vindas. Noiva dele duas vezes – uma delas durante cinco anos –, foi a que chegou mais perto de se casar com o escritor, mas, por causa do "mundo prodigioso" que ele tinha na cabeça, acabou desistindo da relação para investir em outra.

Panegírico

Milena Jesenská, a mais bela das mulheres que cruzaram o caminho de Kafka (ao menos pelo caderno de fotos incluído no livro), escreveu um panegírico comovente, reconhecendo a genialidade do escritor: "Ele via o mundo cheio de demônios invisíveis a dilacerar e destruir seres humanos indefesos. (...) Ele compreendia as pessoas como só alguém com uma imensa sensibilidade à flor da pele pode compreender, alguém que é solitário, alguém que pode reconhecer os outros num lampejo, quase como um profeta. Seu conhecimento do mundo era extraordinário e profundo; ele próprio era um mundo extraordinário e profundo".

Serviço:

O Mundo Prodigioso Que Tenho na Cabeça – Um Ensaio Biográfico, de Louis Begley. Companhia das Letras, 256 págs., R$ 37.

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