Todo começo de ano, acontece, a poucas horas de voo de Curitiba, um dos principais festivais de teatro da América do Sul: o Santiago a Mil. Principal evento artístico do Chile, organizado pela Fundación Teatro a Mil (FITAM), estima ter tido este ano um público de mais de meio milhão de pessoas. Os 92 espetáculos oriundos de 25 países dos cinco continentes tiveram características bastantes ecléticas englobando teatro, teatro de rua, dança, performance, instalação, circo e música.
O grupo britânico The Tiger Lillies marcou presença no começo da mostra "Tocatas Mil" que ainda contava com o maestro e compositor chinês Tan Dun apresentando trilhas sonoras de filmes de artes marciais, o conjunto Rastak que trouxe sua pesquisa em música popular iraniana, entre várias outras atrações vindas da China, Uruguai, Espanha, Argentina e muitas do próprio Chile. Destas, destaque para a multicultural Kali Mutsa e o pop Tunacola.
Acompanhando as artes cênicas, a exposição "Quino por Mafalda" homenageou o cartunista argentino aos 50 anos da sua cultuada personagem. Uma das várias programações gratuitas que envolviam ainda debates, palestras, exibição de filmes e oficinas de múltiplas disciplinas.
Das diversas obras chilenas, "La Imaginación del Futuro", do diretor Marco Layera, se destacou ao propor uma releitura de levada "punk" do discurso de Salvador Allende ao povo chileno antes do golpe de 73. Ácidos e vigorosos, os atores da companhia La Re-Sentida incorporam ministros/publicitários que interferem em todos os aspectos do que seria o último endereçamento do presidente à nação. O mal-estar da história recente foi sentida e absorvida por uma enorme plateia que lotou o Centro Cultural Matucana 100.
Entre os destaques internacionais de teatro, esteve na capital chilena o diretor e dramaturgo francês Joël Pommerat com "Cenicienta" - uma versão contemporânea do conto "Cinderela". Da Letônia, veio "Black Milk" do encenador Alvis Hermanis que trata da identidade letã na relação que a população rural tem com suas vacas numa montagem tão bela quanto simples. A sul-africana "Exhibit B" do diretor Brett Bailey - performance que mistura instalação, inspirada nos zoológicos humanos do passado onde pessoas de países colonizados eram exibidos como curiosidade exótica - cria impacto ao expor o racismo brutal que atravessou os séculos e ainda não se extinguiu. Ao ocupar o Palácio Cousiño, antiga residência da família proprietária da vinícola Cousiño Macul, a obra tenciona ainda mais as diferenças raciais históricas e contemporâneas na medida em que móveis e pinturas valiosas dividem os exuberantes salões da mansão com as instalações desumanas de atores negros em exposição.
Único representante brasileiro, o Teatro da Vertigem do diretor Antônio Araújo transpôs para as ruas do bairro Patronato a essência do projeto que desenvolveu no bairro paulista Bom Retiro. "Patronato 999" discutiu questões sobre a urbanidade e relação do indivíduo com o consumismo, imagem e massificação a partir da arquitetura e de questões particulares da vizinhança. Ambiciosa, a produção passava por galerias e ruas da região, não era raro ver até cachorros acompanhando o público que reagiu impressionado com a montagem.
A programação movimenta toda a cidade; ocupa não só teatros, mas museus, parques, praças e ruas. Procura produzir experiências e aproximar a arte do mundo à população. A empreitada, capitaneada pela poderosa diretora executiva Carmen Romero, conta anualmente com o orçamento mais generoso do país para a cultura.
Impossível não se perguntar se a participação do Brasil não poderia ser maior num festival desta magnitude. Para além da barreira linguística - que poderia ser facilmente contornada (afinal, havia peças faladas em letão, coreano, grego, indiano, etc.), talvez falte um olhar recíproco entre nós e os países sul-americanos. Preparemo-nos para o ano que vem.
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