Caderno especial
Festival a fundo
A Gazeta do Povo publica nesta segunda-feira (14) um caderno especial sobre o 20º Festival de Curitiba, com indicações da equipe de reportagem do Caderno G sobre alguns dos destaques presentes na programação do evento.
Feitas a partir de entrevistas com diretores, dramaturgos e integrantes dos elencos das peças, as reportagens têm o intuito de dar mais subsídios ao leitor do jornal no momento de escolher o que assistir dentre a vasta programação do evento, que tem início em pouco mais de 15 dias. Confira!
"No Brasil, o branco não gosta do preto e o preto também não gosta do preto." A conclusão do dramaturgo Nelson Rodrigues após uma viagem ainda adolescente ao Recife, em 1929, fez com que ele sentisse vontade de escrever uma peça sobre negros. A ideia só sairia do papel em 1946, motivada pelo convívio com o jovem ator negro Abdias do Nascimento, a quem ele dedicaria o papel do protagonista no espetáculo Anjo Negro, Ismael, um doutor de anel no dedo, belo, orgulhoso de si próprio, mas que trava uma batalha consigo próprio pelos sentimentos contraditórios trazidos por sua condição de ser negro.
À época, não houve quem aconselhasse o dramaturgo a conceder o papel a um negro legítimo. O próprio Ziembinski, que dirigiria o espetáculo, e incrivelmente, mesmo Abdias, votaram por um ator branco com o rosto pintado uma espécie de regra no teatro dito "sério" no Brasil, e não apenas nos Estados Unidos.
A estreia no Teatro Phoenix, naquele mesmo ano, seria um sucesso estrondoso. A proprietária da casa, a atriz Maria Della Costa, faria Virgínia, a bela esposa branca tomada à força por Ismael, interpretado pelo ator Orlando Guy, com graxa no rosto. Ela, a quem se pode atribuir o papel de verdadeiro anjo negro, mata todos os filhos logo após o nascimento, como forma de vingança, até que conhece Elias, um homem branco que a fará sentir o desejo de se tornar livre.
De lá para cá, a tragédia foi montada pouquíssimas vezes, mesmo sendo considerada uma das obras mais intensas e poéticas de Nelson Rodrigues. Por isso, será um privilégio conferir a montagem trazida à Mostra Contemporânea do Festival de Curitiba pela Cia. Teatro Mosaico, do Mato Grosso, nos dias 6 e 7 de abril, no Teatro da Reitoria.
Em meio a tantos espetáculos cariocas e paulistas, a peça deve provocar curiosidade também pela sua origem. Sediada em Cuiabá, cidade com produção cultural ainda pouco reconhecida, a Mosaico comemora 15 anos de uma trajetória pontuada por espetáculos de verve popular, essencialmente musicais, feitos para serem encenados em espaços alternativos. Boa parte deles foram apresentados no Fringe, como o mais recente, Caravana da Ilusão, e o de maior sucesso, Auto da Estrela-Guia, que rendeu sessão extra à companhia.
A companhia adentra a Mostra Contemporânea com uma proposta diversa e após ser duplamente convidada. "Fomos convidados no ano passado, mas a gravidez da atriz principal, Joana Seibel, coincidiu com as datas do festival", conta o diretor Sandro Lucose. Este ano, felizmente, houve nova chamada, e Anjo Negro finalmente poderá ser visto fora de Cuiabá, onde estreou em dezembro de 2009 com dez apresentações. "Faremos uma turnê nacional este ano, e a primeira cidade será Curitiba", conta Lucose.
A dificuldade de Nelson Rodrigues para ver sua peça nos palcos foi sentida por Sandro Lucose desde que, há 10 anos, abdicou da ideia de montá-la como projeto final do curso de teatro realizado na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro UniRio. "Não havia atores negros suficientes na escola", lembra. No Mato Grosso, para onde voltou após se formar, a empreitada seria ainda mais difícil diante da realidade local. "Eu me sinto na atual conjuntura com o mesmo desafio da década de 50. Os atores daqui ainda são muito jovens, não há escolas de teatro, imagine então encontrar um elenco de 13 atores negros para o espetáculo", diz.
Após o tempo necessário para formar um elenco profissional, o diretor finalmente decidiu levar a cabo a empreitada. "Não temos ator negro em Cuiabá, então, foi preciso convidar um de fora para interpretar Ismael (Deo Garcez). Se fosse montar a peça no Rio de Janeiro, em Salvador ou no Nordeste de modo geral, penso que hoje não haveria essa dificuldade", conta.
Para enfrentar o problema com o restante do elenco, o diretor optou por uma solução cênica não-realista, estilizada, como, por exemplo, vestir os atores brancos com indumentárias que fazem referências aos elementos das religiões afro-brasileiras como a umbanda e o candomblé. Ele também foge do espaço realista criado pelo dramaturgo buscando aproximações com a linguagem cênica contemporânea. "Nelson descreve que a platéia precisa avistar uma casa de dois andares mobiliada, mas transformei o cenário em uma gigantesca cama de casal que se transforma em outros ambientes como um grande mausoléu", conta.
A sonoplastia, calcada no folclore e nas religiões, é feita ao vivo pelos próprios atores com instrumentos musicais e objetos como ferro, vidro e madeira. "O ator se apóia pouco na cenografia, tem que se desdobrar corporalmente. A base do espetáculo é a dança contemporânea e a capoeira" conta.
Lucose enumera as razões prováveis que fizeram a peça ser tão pouco montada. "É um texto caro, que exige muitos atores em cena, e que requer maturidade por sua densidade e pela forte referência à tragédia grega", diz, agradecendo o apoio do Festival de Curitiba, do Banco da Amazônia, que apóia a companhia desde 2009, e do Prêmio Myriam Muniz recebido no ano passado para tornar possível a circulação do espetáculo.
Serviço
Anjo Negro (confira o serviço completo do espetáculo), da Cia. Teatro Mosaico. Dias 6 e 7 de abril, às 21 horas, no Teatro da Reitoria. Ingressos a R$ 25 e R$ 50.
» Confira a programação do Festival de Curitiba no Guia Gazeta do Povo
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