O dramaturgo Nelson Falcão Rodrigues morreu em 21 de dezembro de 1980. Nesses 25 anos, de lá para cá, as polêmicas em torno de sua obra foram atenuadas, mas não excluídas. Se é verdade que parte das polêmicas foram alimentadas pelo próprio escritor, também é verdade que elas talvez não constituíssem problemas graves. Porém, de tão excessivas, colocaram a obra de Rodrigues no meio de uma encruzilhada entre a repulsa e a adesão incondicional.
São dois equívocos principais que emolduram boa parte das leituras das obras e cujas conseqüências podem ser vistas até hoje. O primeiro diz que as peças de Nelson Rodrigues são meramente pornográficas e o autor, um tarado irrecuperável.
Essa crítica moralista tem duas origens mais ou menos distintas, mais ou menos próximas. Foi essa a recepção dada às quatro peças míticas Álbum de Família (1945), Anjo Negro (1946), Senhora dos Afogados (1947) e Dorotéia (1949), que constituem o que o autor denominou "teatro desagradável". Quase todas sofreram algum tipo de interdição da censura.
Por volta de 1951, o escritor dá início aos contos de A Vida Como Ela É... para o jornal A Última Hora. Como o jornal de Samuel Wainer era getulista de corpo e alma, a ironia do perspicaz político Carlos Lacerda, adversário de Vargas, feria o dramaturgo, responsável por boa parte da popularidade do jornal, mas visava o ditador. A fama de tarado e desagregador da família forjou-se nesta época graças à oratória eficaz de Lacerda, que chegou a apontar Rodrigues como comunista.
A falácia do Nelson pornográfico faz menos sentido para o leitor desse final de 2005, acostumado com os versos de Tati Quebra-Barraco e com a exploração da nudez na TV. Ainda assim, durou muito o engano. Parte das montagens cinematográficas dos anos 70 e 80 alimentou o equívoco ao ressaltar o erotismo.
Desde o final dos anos 40, o suposto Nelson pornográfico provocava a classe média conservadora do Rio de Janeiro com dois sentimentos distintos à primeira vista, mas, no fundo, concomitantes. A repulsa ao tarado e o desejo por sua "pornografia". Convém lembrar que a época era outra, a revolução sexual engatinhava e o pudor ainda tinha algo de afrodisíaco.
Nem sempre mitificações impedem o sucesso do escritor. Ao contrário, pequenos mitos impulsionam carreiras de sucesso comercial. Mas, se a obra dos pequenos escritores pode ser impulsionada, a dos grandes, em regra, é mutilada. Parte do esforço da fortuna crítica e teórica do escritor fica restrita ao desmonte de mitos e novas propostas de leituras ou não são feitas, ou são apenas meras reproduções de inverdades. O dramaturgo, por sobreviver em boas montagens no teatro e no cinema, é a principal vítima dos mitos que inibem leituras críticas e inteligentes de sua obra.
O cronista
O segundo equívoco atinge menos o dramaturgo e mais o cronista. A partir de 67, com a publicação do antológico Menina sem Estrela, o jornalista começa um modelo de crônicas, entre memorialísticas e confessionais, nas quais a prosa enxuta, pontual, rica em imagens e abusada nos adjetivos produz pérolas da literatura no meio efêmero do jornal.
Com munição literária de primeira, o autor mira sua ironia para as esquerdas e seus ícones. Essas crônicas são reflexos de uma época de rupturas e, ao mesmo tempo, reflexões aguçadas sobre esse tempo. Constituem boa fonte documental para os estudiosos do período porque produzidas no calor da hora, sem meio-termos e compromissadas não com o futuro, mas com a atualidade (à época).
Nesse contexto, a crítica moralista da direita dá lugar para a crítica política da esquerda. Surge o Nelson reacionário, de direita e amigo da ditatura. Pode ser que a crítica esquerdista esteja mais próxima da realidade, mas, ainda assim, o equívoco se impõe.
Nelson Rodrigues era, de fato, anticomunista. A Rússia, para ele, era "a antipessoa, o anti-homem e o capitalismo, com todos os seus crimes, ainda é melhor que a experiência concreta do socialismo". Este, ao suprimir o indivíduo e dar voz às massas, acaba também com o homem, pois não há homem quando há multidão. Daí deriva a sua conhecida blague contra a unanimidade ("Toda unanimidade é burra.").
Mais do que anticomunista, Rodrigues queria ser um livre pensador ao seu modo, distante do patrulhamento ideológico das esquerdas, que dominava as redações e a vida intelectual do país e fazia silêncio sobre intelectuais que não aderiam ao "modismo ideológico". Cita o exemplo de Gilberto Freyre, como intelectual deslocado do debate e lembra grandes escritores esquecidos, porque não afeitos ao pensamento esquerdista.
Há um lado rodrigueano menos lembrado. Gozando de boa reputação entre os militares, o escritor prestou depoimento para a polícia da ditadura, a favor do líder estudantil Vladimir Palmeira, porque enxergava nele um líder e também saiu em defesa do tropicalista Caetano Veloso porque, na sua opinião, o músico era importante para a cultura do Brasil.
O maior problema que enfrentou foi o silêncio. Seus livros pouco repercutiram nos meios literários brasileiros e, por muito tempo, existiu para o grande público somente o Nelson Rodrigues dramaturgo. A equação é mais complexa. Não só o silêncio da esquerda obstruiu o cronista. Muitos escritores, inclusive Rodrigues, não viam a crônica, nascida no jornal, como grande literatura. O gênero era treino para grandes literaturas e ocupava lugar intermediário na sua obra, entre os folhetins assinados sob pseudônimos femininos e a dramaturgia.
No início da década de 90, com reedições das obras não-teatrais do autor na coleção organizada por Ruy Castro para a Companhia das Letras, o panorama se alterou e suas crônicas começaram a receber os estudos que merecem. No entanto, a mudança é tímida ainda. Os acadêmicos privilegiam a dramaturgia rodrigueana e o estudo das crônicas é reduzido, sobretudo, às futebolísticas. De qualquer forma, se é consenso que o modernismo brasileiro chegou aos palcos em 28 de dezembro de 1943, com a estréia de Vestido de Noiva no Municipal do Rio de Janeiro, ainda não é consenso que o verdadeiro palco de Nelson Rodrigues sempre foi o jornal. Com o exercício diário das crônicas, é possível que tenha conseguido algo que os modernista tentaram sem êxito: escrever alta literatura com os pés no chão, escrever como quem fala, escrever não em português, mas em brasileiro.
* Psicanalista e mestrando em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná.
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