Ficção Completa
Bruno Schulz
Tradução e posfácio de Henryk Siewierski. Apresentação de Czeslaw Milosz. Cosac Naify, 416 págs., R$ 89.
A coleção Prosa do Mundo, da Cosac Naify, ganhou mais um item: Ficção Completa, do escritor polonês Bruno Schulz. Os leitores já familiarizados com o renome e com a obra do autor preferirão sair correndo atrás do volume recém-lançado a seguir adiante, pacientemente, a comedida marcha destas linhas. Não os recrimino pela abrupta debandada rumo à livraria mais próxima. E aviso aos demais que talvez devessem fazer o mesmo, a fim de garantir o quanto antes para si um exemplar da bela publicação.
Da tardia estreia literária de Schulz, judeu nascido em 1892 em Drohobycz (hoje na Ucrânia), até o estúpido disparo que lhe tirou a vida em 1942, no gueto edificado na cidade após a vitória dos invasores nazistas sobre os invasores soviéticos, mal se passou um decênio. Ao primeiro livro, o volume de contos Lojas de Canela, que se editou em Varsóvia em 1933 graças a Zofia NaÅkowska, escritora nascida não muito antes de Schulz, mas de prestígio já consolidado na época , sucedeu apenas mais um, outra coletânea de contos, no ano de 1937, Sanatório sob o Signo da Clepsidra. Somando a ambos os livros mais quatro contos esparsos, temos o total da produção narrativa schulziana, coligida no título da Cosac Naify. Do manuscrito do romance O Messias, quiçá concluso, dos papéis que teriam sido postos a salvo fora do gueto, nunca se acharam indícios. Mas a pequena obra restante bastou para tornar seu criador um dos maiores vultos da literatura do século 20.
Restaram também escritos ensaísticos, de enorme interesse, e parte da rica correspondência mantida por Schulz. Que antes de empunhar a pena, contudo, já se dera a conhecer como artista plástico. E há boas razões para meditar sobre os nexos entre os desenhos e pinturas que deixou e o mundo singular que erigiu em virtude de seus dotes como prosador. Avaliando trabalhos schulzianos expostos em 1922, um crítico elogia neles o emprego original de elementos pictóricos de épocas antigas e recentes mencionam-se o rococó, Goya e Rops a serviço da expressão de "intensas vivências" e de "sonhos fantásticos", com um resultado encantador, que inebria "como um possante narcótico." Observações premonitoriamente certeiras, pois valem tanto para o ateliê, quanto para a escrivaninha de Bruno Schulz. De fato, seus contos desenvolvem-se a partir de um núcleo de vivências, transfiguradas em palavras pelo pincel de uma fantasia exuberante e irrequieta, sempre à beira da vertigem.
Exemplos darão ideia mais precisa do que se afirma. Entregue ao "grande livro das férias", o menino Józef, a quem se confia a narração, saía com a mãe nas tardes de sábado, para surpreender nas ruas os acólitos de uma estranha "irmandade solar": "Os transeuntes, patinhando no ouro, tinham os olhos pregados [...], como que grudados de mel, e o lábio de cima, levantado, descobria-lhes a gengiva e os dentes. E todos [...] tinham aquela careta da canícula, como se o sol pusesse em seus seguidores a mesma máscara, [...] pintada no rosto com uma tinta dourada e grossa, [...] essa careta dionisíaca a máscara bárbara de um culto pagão." Em si mesmo banal, o passeio de verão toca Józef e, ao impulso da metáfora, transmuta-se caleidoscopicamente, alçando a prosa às alturas de uma encantatória poesia.
Imagine-se tal operação reiterada a cada passo da criança, por exemplo, ao dar com o pai à noite convulso da "ira divina dos santos varões", em uma "tirada profética [...] que fazia tinir as janelas" com "explosões de conjuros, lamentos e ameaças" escarranchado "sobre o enorme urinol de porcelana"... Ou diante do cachorrinho Nemrod, que às voltas com o esquivo achado de um inseto, em súbita inspiração, solta o agudo soprano de um latido, saudando as mil possibilidades da "extraordinária empresa da vida, cheia de coisas picantes, frêmitos e desfechos inesperados." Dar conta dos recursos dessa linguagem é tarefa que assustaria muitos tradutores. Frisemos então mais um dado digno de nota: a esmerada versão dos textos é do polonês Henryk Siewierski, que traduziu Sanatório e Lojas de Canela pouco depois de escolher o Brasil como seu novo lar (em 1994 e 1996, respectivamente, os livros foram publicados pela Editora Imago). Retocadas e acrescidas aos demais contos schulzianos, suas versões reúnem-se agora em Ficção Completa, que traz ainda, entre outros adendos críticos e reproduções de desenhos de Schulz, um valioso posfácio do tradutor. Siewierski afirmou quando Sanatório veio a lume que "A tradução pode ser uma leitura em outra língua, uma leitura com os outros e para os outros." Privilégio nosso ele pensar assim.
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