O poeta com a alma ferida

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O compositor e escritor Chico Buarque, filho de um dos fundadores do PT, o historiador Sérgio Buarque de Holanda, confessou na última semana, durante a Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo (RS), estar triste com a crise política que abala o país. Afirmou que este "não é um momento agradável de se viver".

"A alma do país está ferida", desabafou o autor de Budapeste, um dos romances mais premiados da história recente da literatura nacional e um dos artistas mais venerados do país. Chico, normalmente econômico em seus comentários a respeito de qualquer assunto, seja política, música ou literatura, anda expressando suas posições e falando de si com maior freqüência desde que completou 60 anos, em 2004.

Uma prova dessa nova fase de relativa extroversão de Chico é a série de documentários exibida pelo canal pago DirecTV, e que agora chega ao mercado, lançada pela EMI em forma de DVD e dividida em três episódios, um em cada disco: Meu Caro Amigo, À Flor da Pele e Vai Passar.

Realizada em comemoração ao 60.º aniversário do artista, a série explora diversos aspectos tanto da trajetória artística quanto pessoal do cantor e compositor que se tornou uma unanimidade nacional muito cedo, em 1966, quando venceu o Festival da Canção da Record com "A Banda". ele tinha apenas 22 anos.

Meu Caro Amigo abre a retrospectiva da obra de Chico Buarque, o acompanhando pelas ruas do Rio de Janeiro, cidade onde vive. Ele nos serve de guia à exposição na Biblioteca Nacional que o homenageou no ano passado. Sobre sua terra natal – vale lembrar aqui que Chico passou a infância e a juventude em São Paulo e na Itália – , o compositor diz: "Conservei um olhar quase estrangeiro sobre o Rio. Tenho ainda uma relação de deslumbramento. O Rio, na minha origem como compositor, é a fonte da música".

Ainda no mesmo DVD, Chico fala da importância de seus parceiros, que, na verdade, são antes de tudo amigos – "As parcerias foram decorrência disso". O disco traz clipes antológicos, como os duetos com Tom Jobim, em "Falando de Amor", e com a irmã Miúcha, na bela canção "Maninha", composição que embute em suas letras uma forte metáfora sobre o estado de perplexidade vivido pelo país durante o regime militar. Desfilam pelo disco outras figuras ilustres da MPB, como Djavan, Edu Lobo, Elis Regina, Gal Costa, Toquinho e Dorival Caymmi.

Gravado em Paris, onde Chico é proprietário de um apartamento no bairro Marais e costuma se isolar para escrever, o segundo tomo da coleção de DVDs tem o sugestivo título de À Flor da Pele. Nele, o artista discorre, obviamente, a respeito de sua paixão pela capital francesa, que lhe foi apresentada pelo pai, ainda na infância. A temática predominante do episódio, entretanto, é o feminino, recorrente na obra do artista."Sou um curioso do universo feminino. Me esforço, tento entender, mas acho que nunca vou conseguir. As mulheres são surpreedentes e misteriosas", explica.

Além da canção que dá título ao disco, À Flor da Pele inclui alguns dos clássicos absolutos desse Chico mais lírico e intimista, como "Joana Francesa", "Tatuagem" (dueto com Caetano Veloso), "Com Açúcar e com Afeto" (dividindo o microfone com a grande amiga Nara Leão), "Terezinha" e "Mulheres de Atenas", ambas interpretadas na companhia do amigo e parceiro Francis Hime.

Exílio

O terceiro e último DVD da coleção leva o título de Vai Passar e foi gravado inteiramente em Roma, onde Chico e sua ex-mulher, a atriz Marieta Severo, se auto-exilaram no final da década de 60, depois da promulgação do Ato Insitucional n.º 5, em 1968. Foi na metrópole italiana que nasceu a primogênita do casal, a também atriz Sílvia Buarque.

A escolha da Cidade Eterna para cenário desse episódio não foi aleatória. Como a temática central dessa parte da série é a política dentro da vida e da obra de Chico, a capital romana parecia uma locação adequada, por conta das lembranças ambíguas por ela suscitadas. Lá, o artista fez grandes amizades, como o escritor e compositor Sérgio Bardotti, com quem chegou a gravar um disco em italiano. Mas também foi nas suas ruelas e becos que amargou a angústia e a saudade do Brasil, sem saber que rumos o país iria tomar sob o jugo da ditadura militar.

No episódio, Chico conta como driblava a censura, escrevendo, propositadamente, letras longuíssimas, para que o excesso fosse cortado pelos censores e permanecesse, mais ou menos intacto, o essencial. Também revela como surgiu o pseudônimo Julinho da Adelaide, sob o qual escreveu o emblemático samba "Acorda Amor".

Entre as canções que desfilam por Vai Passar, além da canção-título, espécie de hino do movimento Diretas Já, estão "Apesar de Você", "Cálice" (parceria com Gilberto Gil", "Sabiá" (mais uma dobradinha com Tom Jobim) e "Tanto Mar", homenagem do compositor brasileiro à Revolução dos Cravos (1974), que derrubou o regime salazarista em Portugal.

Não há como evitar, contudo, uma certa melancolia ao assistir a Vai Passar. Um dos porta-vozes mais importantes do movimento pela redemocratização do país, a coerência da trajetória de Chico Buarque parece entrar em perturbadora dissonância com o momento político que o país hoje atravessa e com a falência do PT como ponta de lança da esquerda brasileira. A alma do poeta também deve estar, segundo suas próprias palavras, ferida.