As versões do Auto da Compadecida nas telas
No imaginário dos cinéfilos, o périplo de Ariano Suassuna pelo audiovisual costuma ser lembrado apenas pela versão de Auto da Compadecida dirigida pelo pernambucano Guel Arraes, feita originalmente como minissérie para a TV, em 1999, e condensada como longa-metragem para salas de exibição em 2000.
Mas as peripécias picarescas de João Grilo já haviam sido levadas às telas antes, em 1969, sob a direção do húngaro naturalizado brasileiro George Jonas, com Regina Duarte, Armando Bógus e um estreante chamado Antônio Fagundes. Pouco comentado, o filme de Jonas, já disponível em DVD, foi rodado no Recife e em Brejo da Morte de Deus, em Pernambuco. O pouco que se fala dele é que sua produção teria sido uma das mais caras da década de 60, que foi marcada pelo Cinema Novo.
A produção não marcou tanto quanto Os Trapalhões no Auto da Compadecida, versão dirigida por Roberto Farias em 1987 e estrelada pela trupe comandada por Renato Aragão. O eterno Didi vivia João Grilo, enquanto Mussum era o Cristo negro.
A produção teatral brasileira não mudou muito. Um dia (uma noite), uma peça de um autor desconhecido ou quase e há algum tempo na estrada é representada com sucesso e imediatamente atores, diretores, produtores correm atrás dele para abrir suas gavetas ou, mais ainda, pedem a ele para escrever outras maravilhas iguais àquela que passou. É assim ainda hoje, foi assim nos idos dos anos 50 quando apareceu no Rio um grupo de amadores pernambucanos apresentando o drama (no sentido de espetáculo, como quer, e quer bem, o próprio Ariano Suassuna) Auto da Compadecida. Foi um rebuliço no mundo teatral e haja pedidos de peças ao novo grande autor. A Cia. Nydia Licia-Sérgio Cardoso, já em janeiro de 1958, estreava O Casamento Suspeitoso, do jovem Suassuna (quando se diz o jovem Brecht, por exemplo, fala-se também da juventude da obra, o que não é o caso aqui).
Os artistas pedem para o novo autor repetir a dose e os críticos acusam o novo autor de se repetir. Com O Casamento Suspeitoso não seria diferente. No entanto, como constrói outro ponto de apoio para a melhor leitura de Ariano Suassuna, é a peça que dá régua e compasso para traçar sua trajetória de dramaturgo. Suas obsessões estavam fixadas, seu estilo definido, seu caminho aberto. Suassuna, o escritor de origem rural exilado no meio da burguesia urbana, como ele se confessa, seria em todos os sentidos o poeta novo do seu povo sertanejo ou, mais genericamente, também usando expressão sua, dos povos castanhos do mundo. Na sua dramaturgia estão vivos os tipos do romanceiro popular nordestino como em Goldoni e Molière estão recriados os tipos da comédia mediterrânea misturados com as gentes da sua memória de menino do sertão, do seu "mundo mítico".
A partir daí, desenvolve-se a dramaturgia que consagra Ariano Suassuna, O Santo e a Porca, A Farsa da Boa Preguiça, A Pena e a Lei, as peças mais conhecidas e representadas. Não é fora de propósito perguntar até que ponto a demanda pelo Suassuna da Compadecida forjou o autor que é hoje um clássico do teatro brasileiro, dessas peças cômicas, ibéricas, sertanejas, e matou o autor de dimensão trágica de A Mulher Vestida de Sol. E é fácil responder que esse era o Suassuna predestinado e se algum papel teve a demanda foi apenas a de apressar a justa e devida tomada de rumo. Na verdade, as mesmas características já estavam presentes nas primeiras peças. Uma Mulher Vestida de Sol é uma tragédia com profundos traços do teatro de Lorca, ou seja, já é fruto da mesma inspiração ibérica e culta, que estaria sempre presente no seu teatro, misturada desde aqui com as fontes populares e sertanejas. A partir da Compadecida, o que Ariano faz, especialmente, é acentuar o cômico. Ou seja, o popular (no sentido da tradição que vem de Rabelais) ganha primazia sobre o culto na sua produção.
A obra de Suassuna já mereceu todas as interpretações, dela já se disse quase tudo. Além dos adjetivos merecidos que a classificam genial, magistral, clássica poderia arriscar, para selecionar um modo de defini-la, que ela é marcada pelo signo das oposições, logo da desconstrução, da reinvenção. Mesmo o Suassuna "religioso" subverte os dogmas e constrói sua própria igreja, com um Cristo negro, uma virgem sempre bem-humorada e que não teme misturar-se com safados e arruaceiros, coisa imprópria para uma virgem, santos espertos como o Simão Pedro, da Farsa da Boa Preguiça, aliás acompanhado por um filho de Deus de gravata borboleta. Graças a Deus e a Suassuna, nessa igreja, nossa salvação é mais segura.
O crítico ideal de Suassuna talvez seja um daqueles amigos que ele tem, gente com quem conversa pelos Cariris, e que o dramaturgo, romancista, poeta diz que tudo o que faz é copiar o que dizem. Um deles, qualquer um, poderia resumir o juízo crítico da obra do amigo Ariano de forma mais que perfeita: o cabra é bom que é danado.