Cheguei à obra do neurologista britânico Oliver Sacks por meio de seus leitores. Foi minha conversão. Uma vez que usamos uma palavra da esfera religiosa, permitam-me também uma heresia: a história dos que abriram os livros de Sacks impressionam tanto quanto Tempo de Despertar ou A Mente Assombrada, para citar dois.
Talvez o próprio Sacks – não estivesse ele se despedindo da vida – se interessasse em investigar por que lembranças tão banais, como a de um leitor que debulha um livro que leu – se tornaram, para alguém, uma cena viva, colorida, detalhada, algo próximo da alucinação. Há 25 anos tropeço em homens e mulheres nos quais Sacks passou o rodo. Foi-me apresentado por uma amiga. “Não consigo mais deixá-lo”, disse, como se fosse um daqueles leitores que entram para confrarias secretas de autores – os de Clarice Lispector, por exemplo.
A partir daí, todas as vezes que encontrei um livro de Sacks numa livraria, e foram muitas, reencontrava a imagem daquela amiga leitora . O interesse dela eram as artes, não a neurologia. Mas ao falar do assunto, apropriava-se dele por direito, fechando o ciclo da leitura. O leitor é aquele que fala. O mesmo aconteceu com outra amiga – essa enredada por Sacks por ter de desatar um novelo da vida real – a convivência com a síndrome de Williams. Outro amigo ainda, não se separava de Vendo Vozes, do qual provava parágrafos, de tempos em tempos, como se lesse versículos da Bíblia.
Esses três leitores de Sacks – o que descobre, o que o usa e o que, em certo sentido, transa com ele – foram o bastante para sugerir uma outra suspeita: o divertido memorialista de Tio Tungstênio, esse guia que nos leva para passear na Ilha dos Daltônicos, é um Sonrisal efervescente no copo. Em fevereiro, ao anunciar que vai morrer de câncer e ao dar seu gracias a la vida, provocou tristeza, admiração e coisa e tal. Mas também a certeza de que está vivinho da silva em seus leitores. Sacks, não vai. Ele fica.
Tive essa impressão ao ler o seco, mas tocante depoimento do físico Marcelo Gleiser, leitor e amigo de Sacks. Em outras palavras, disse que o neurologista tirou da zona escura um sem número de pessoas que por séculos nos botavam medo – os estranhos. A gente sabe disso. O que não sabia era que tanta gente estava muito a fim de mergulhar no mundo dos surdos, alucinados, desmemoriados, superdotados e quetais. Ok, antes dele houve Anne Sullivan, mas cá entre nós, Oliver abalou a maneira de ver o que parecia defeito. E o fez por meio de seus leitores. Eles são a garantia da eternidade do autor, talvez como dizia Barthes.
Se fosse resumir o que me disseram sobre ele, diria que é um daqueles autores que incita empatia. Conta o que sabe, não ensina. É um confidente de sua ciência e parece ouvir o que em segredo lhe perguntamos. Oliver Sacks nada tem a ver com os tecnocratas da medicina. Embora nos segrede como é que as coisas funcionam, ele se comporta mesmo é como um narrador de histórias alheias.
O que existem são pessoas e humanidades. Não se deve ter pena dos que operam com equipamentos disfuncionais, pois cada um realiza uma experiência na vida com aquilo que tem, inclusive eu e você. Doentes neurológicos são donos de histórias extraordinárias. Ao contá-las, Sacks não é só carinhoso com o mundo. Ele é sexy. Dos dois impulsos paradisíacos que nos movem – a estética e a erótica, ficou com o segundo. O outro é desejável.
Um sujeito como ele só podia se confundir com um antropólogo. Não à toa, declarou tempos atrás que dera de interessar cada vez mais por grupos do que por indivíduos. Queria assistir também às enfermidades coletivas. Os corpos individuais são corpos coletivos. Pena ele estar se despedindo, pois suspeito que estejamos todos meio adoentados, a um passo de sermos desumanizados pela tecnologia. Sacks, sabemos, acaba de pedir licença e se desculpar. Não tem mais como ajudar. O sujeito que traduziu a casa às vezes bagunçada que habitamos se despede, deixando trabalho para a gente. Ainda bem que escreveu um livro sobre a enxaqueca. Vamos precisar.