Rotina
Os eletrônicos tornam-se inúteis; a brisa paralisa
A segunda certeza ao chegar ao Psicodália é de que os eletrônicos se tornarão inúteis. Celular não pega, para o alívio dos anacrônicos. De uns anos para cá, sumiram as câmeras digitais portáteis e apareceram legiões de fotógrafos amadores com câmeras (semi) profissionais, mais resistentes à umidade e menos discretas. Nem do pau de selfie o evento escapou. Contei um durante um show em palco aberto, em plena atividade durante um verso sobre uma concha navegante de brilho cintilante. Ambos, verso e gesto, fugazes. Os relógios quebrarão ao passar pela portaria: os dois ponteiros param no número 4 e os encontros são marcados pela programação: "Te encontro no refeitório depois do show dO Terno" ou ainda "passei no [camping] Mutantes depois da chuva, no fim da tarde, mas não encontrei o Fulano". Há brasas queimando na Cozinha Comunitária a qualquer hora do dia ou da noite. A atmosfera mantém-se turva e adocicada.
Das certezas que se tem ao comprar o ingresso para o Psicodália, uma delas é de que choverá pelo menos um dia. É a primeira confirmação do festival; vem antes mesmo da afirmativa dos piratas do Confraria da Costa. Na 18ª edição do evento, entre os dias 13 e 18 de fevereiro, ela veio sob a forma de chuvisco. Indecisa, contínua, bagunceira. Encharcou os gramados e os cabelos daquelas 7 mil pessoas pouco a pouco, acumulou-se sobre as lonas que protegiam as tendas e agarrou-se ao máximo à crina da Fazenda Evaristo, em Rio Negrinho (SC). Por lá ficou, de sexta a segunda, quando foi dar uma volta para desbaratinar. Voltou na terça-feira entediada, bem na hora de desmontar acampamento. É típico dela acontecer de repente em péssima hora.
O Centro de Informações de Recursos Ambientais e de Hidrometeorologia de Santa Catarina previu que cairiam 150 milímetros de chuva no carnaval de 2015 da cidade catarinense de Rio Negrinho. Mas o que se viu foi uma versão branda em comparação ao que já depurou o público. Em outras edições, como a torrente que encharcou almas na virada de 2012 para 2013, sua fúria despencou quase toda num dia só: um toró de 85 milímetros em poucas horas. O restante chegou em parcelas. A chuva daquele ano açoitou, a deste fez carinho. Quando ela mal aparece, como foi na edição de 2014, é a exceção que confirma a regra ou isto, ou foi uma alucinação coletiva.
Com o tempo o aguaceiro aprendeu a fazer concessões. No show de Baby do Brasil, no sábado à noite, bocas e gotas ficaram suspensas para ouvir a ex-vocalista dos Novos Baianos cantar. Horas depois assomou para refrescar e ficou entre ir e vir no domingo, como um carro atolado que só faz patinar. Recebeu o público de Jards Macalé com gotas grossas e, antes de a segunda-feira amanhecer, a água sumiu. Quem varou a madrugada pode ver, sem molhar a cuca, a aparição surreal do quarteto Apicultores Clandestinos, vestidos de macacão, chapéu e máscara, como manda o traje de quem lida com abelhas. Quando Ian Anderson subiu ao palco, mais tarde naquele dia, a chuva resolveu avisar de leve que voltaria. Garoou soberana até o fim do festival.
Com tanta abundância vinda do céu, é de se estranhar o que aconteceu no segundo dia: torneiras e chuveiros secaram. Foi preciso o reforço de caminhões-pipa para suprir a demanda de 40 mil litros por hora. O motivo era evidente: aumentando o número de pessoas dentro da fazenda, subiria também a quantidade de água para higiene e a proporção de gente que não sabe fechar um registro. Dois rapazes de bermuda e chinelos de dedo estão apoiados em um pé próximos às duchas ecológicas (uma para cada), feitas de garrafas de plástico de cinco litros furadas. Os outros pés jazem pendurados molemente debaixo da água que corre. Ao abrir a torneira, a vazão enche o recipiente, que libera a água com pressão o suficiente para tomar uma ducha-de-tirar-o-suor. O certo seria fechar o registro em seguida para usar apenas os cinco litros. Mas os rapazes estão preocupados em apreciar a cena de um caminhão abastecendo a caixa d'água ao lado. Os pés continuam grossos de lama. Se conseguiram se limpar em algum momento, é certo que chafurdaram até os tornozelos cinco passos depois. Na fila do banheiro, pessoas passam quase uma hora esperando sua vez no chuveiro. Algumas giram tão pouco a chave para evitar sentir a água fria que fazem o disjuntor cair. E começam tudo outra vez. Seu comportamento é cíclico, feito água.
É curioso que um festival que reconecta o público à natureza tenha gente tão preocupada em ver o sol (e apenas o sol) e sentir água quente. Um Psicodália sem chuva e banhos longos e cálidos seria um cenário muito próximo de onde todos partiram: um lugar confortável e controlável. Quem vai ao festival quer esquecer de onde veio e quando se vai a chuva se encarrega de escoar essas lembranças. Quem suplica a São Pedro para que a fazenda esteja seca, saiba que sem chuva não há dália que floresça.
Ian Anderson não quer saber de você
O salão do hotel em que estão amontoados cerca de 20 jornalistas há uma mesa de sinuca e uma parede com quadros que reproduzem rótulos e propagandas antigas de uísque e cerveja. No jardim, estatuetas de gnomos e cogumelos nos lembravam que o Psicodália estava a menos de 30 quilômetros dali. Ian Anderson vestia um colete por cima de uma polo azul e sentou-se despojado no sofá amarelo. Dedicou uma hora do seu dia a responder os jornalistas com paciência e seu senso de humor ímpar. É um senhor sorridente, careca e sóbrio, um pouco diferente daquela figura dos anos 1960 cabelo desgrenhado e roupas extravagantes quando liderava a banda Jethro Tull. Em qualquer época, porém, Anderson diz que nunca se identificou com o movimento hippie nem foi a um festival como parte do público. O que explica muito de sua postura no palco no 18.º Psicodália.
Há shows que funcionam sem a interação do público, mas seriam inesquecíveis se "descessem" do palco. O rock progressivo apresentado por Anderson e banda (a mesma da última formação do Jethro Tull) encantou a audiência por ter sido tecnicamente impecável e por ter no setlist os hits "Aqualung", "My God" e "Thick as a Brick". Mas em poucos momentos os que estavam com os pés na lama se sentiram parte do espetáculo. O caso é que a banda, britânica, não é tão calorosa quanto os brasileiros gostariam. "Há uma característica comum em vocês brasileiros: são muito apaixonados. A música brasileira, de qualquer gênero, é feita com paixão. Não se pode dizer o mesmo de nós. Nós somos espertos e conseguimos fazer músicas que soem como se tivessem sido feitas e tocadas com paixão. E ganhamos muito dinheiro com isso", provocou durante a coletiva.
Anderson não se entregou ao público nem quando um coro o saudou gritando "Ian! Ian! Ian! Ian!". Ele esperou alguns segundos antes de apresentar a próxima música e continuou com os gestos ensaiados de encantador de camundongos. Mas o Psicodália não é Hamelin, nem o Palco Lunar fica em um teatro. Havia pessoas boquiabertas e outras com o olhar parado, mas nenhuma delas apresentou o desvario que as tomou enquanto a banda passava o som horas antes. Mesmo com a cortina preta escondendo os músicos, dezenas gravavam com o celular, aplaudiam, assoviavam e gritavam em direção ao nada, o que não aconteceu na mesma proporção à noite.
A apresentação começou às 23horas e poucos minutos com a sintomática "Living in the Past". Desde a primeira canção Ian dá seus pinotes e mostra seus floreios ao tocar a flauta. Nota-se que se esforça para fazer um bom show: "Não me importo com quem esteja na plateia, nunca me importei. Nossa audiência não era homogênea, nem hoje é. Há dentistas, médicos, hippies, jovens, senhores, pilotos de avião. Só me preocupo em me superar no palco e não em me conectar com a plateia", declarou.
Ele posiciona a flauta próximo à virilha durante o solo de guitarra. A fixação é antiga: em vídeos no YouTube da década de 1970, seus gestos no palco são similares e mais espontâneos. Não dá para reclamar que era outro Ian. São apenas outros tempos.
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