Não é exagero dizer que “Guerra Civil” foi o maior e mais dramático evento dos quadrinhos da década passada. Na esteira de um país traumatizado pelo 11 de setembro, o roteirista Mark Millar, responsável por quase todas os últimos respiros de criatividade dentro dos quadrinhos mainstream, reuniu na série os assuntos mais urgentes de 2007 (e que ainda seguem atuais): terrorismo, intolerância, liberdades civis e a batalha na mídia pela opinião pública.
Há muito tempo que os super-heróis não são mais coisa de criança, mas o resultado visto em “Guerra Civil” pode ser comparado ao que Frank Miller e Alan Moore produziram de melhor. A história se desenrola a partir de um grupo de heróis novatos que, em uma ação desastrada, buscando atenção da mídia, acaba matando centenas de civis.
A resposta do governo, movido pela indignação popular, é criar um Ato de Registro dos Super-Humanos, que precisarão abandonar suas identidades secretas e submeterem-se ao controle estatal. É neste ponto que ocorre a cisão entre o Homem de Ferro e Capitão América, que inspira o filme homônimo (estreia nesta quinta, 28, nos cinemas). Tony Stark aprova a proposta do governo, enquanto Steve Rogers considera a lei inaceitável. A partir daí, Mark Millar aproveita para discutir as seguintes questões:
Impacto na mídia
A influência da mídia no que ocorre nos quadrinhos foi levada a sério pela primeira vez por Frank Miller em “O Cavaleiro das Trevas”, em 1986. Em “Guerra Civil”, essa arena moderna é um dos palcos principais da disputa entre o Homem de Ferro e o Capitão América. A própria trama dos quadrinhos começa com um reality show de super-humanos no qual eles perseguem vilões pelos EUA, uma forma de Millar criticar a busca inconsequente pela audiência.
Após o desastre, a opinião de analistas é mostrada em canais como a CNN — uma das cenas mostra a Mulher-Hulk sendo entrevistada pelo então apresentador Larry King. Em outra, um especialista decreta: “Os poderes deles podem ser assombrosos como armas nucleares. Então não deveriam ser testados antes de terem permissão para atuar em nossas comunidades?” À medida que o enredo evolui, ele reflete sobre si mesmo e suas consequências.
Todo o tempo, Homem de Ferro e Capitão América disputam não só a primazia da justiça, no sentido de quem está do lado certo, mas também o coração da população. Não por acaso, um dos momentos mais intensos da série é quando o Homem-Aranha decide revelar ao público, em uma coletiva de imprensa, sua identidade secreta.
Terrorismo e liberdade
Um dos efeitos quase imediatos dos atentados às Torres Gêmeas em Nova York foi a promulgação do Ato Patriota, que deu ao governo americano poderes para diminuir as liberdades individuais de seus cidadãos. O decreto previa, entre outras medidas, a interceptação de ligações telefônicas e mensagens eletrônicas sem que fosse necessário obter autorização da justiça.
Mark Millar faz um percurso parecido ao mostrar a criação do Ato de Registro dos Super-Humanos (algo parecido com o Ato de Registro dos Mutantes criado por Chris Claremont nos anos 1980, em X-Men) logo após a comoção gerada pela explosão de uma escola primária em Stamford, cujo saldo foi centenas de crianças mortas. E o ato do universo Marvel provoca tanta celeuma quanto o Patrioct Act. Alguns heróis — é o caso do Capitão América — ficam contra justamente pelo fato do governo reter informações cruciais como as identidades de cada um, que até então permaneciam secretas. Mais do que isso: Capitão América vê o governo e a SHIELD — organização que dá suporte para o Ato — com desconfiança, por sua ligação com a comezinha política cotidiana. “Não venha com politicagem pra cima de mim”, diz ele à Maria Hill, da SHIELD. “Super-heróis precisam estar acima dessas coisas, ou Washington vai começar a nos dizer quem são os supervilões.”
Mark Millar (roteiro) e Steve McNiven (desenhos)
Ed. Panini, 208 páginas, R$ 58
O valor das leis
“Acho que supervilões são caras mascarados que se recusam a obedecer a lei”, afirma Maria Hill, em resposta ao Capitão. Temos o direito de obedecer apenas às leis que achamos justas? De acordo com o filósofo Jean-Jacques Rosseau (1712-1778), “a única forma legítima de autoridade política é aquela em que todas as pessoas tenham concordado em torno de um governo com o objetivo da preservação mútua”. É o contrato social, no qual a vontade geral fundamenta a criação das leis.
Governar de acordo com o “consenso dos governados” é justamente o que faz o governo americano face à tragédia de Stamford, Connecticut, causada pelos Novos Guerreiros. Em tese, o Capitão América deveria se submeter ao Ato de Registro dos Super-Humanos, revelar sua identidade e trabalhar para o governo.
Claro que a principal referência quando se fala de Capitão América é sua luta contra a Alemanha nazista, durante a Segunda Guerra Mundial. Um estado policial que foi eficiente em matar justamente porque seus soldados e burocratas não faziam nada além do que “seguir a lei”.
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