A morte de Clara
Vagner Fernandes dedica o último capítulo de Clara Nunes A Guerreira da Utopia ao esclarecimento da morte da cantora mineira, motivo de uma polêmica que já dura 25 anos.
O jornalista teve acesso a minuciosa análise de toda a documentação em torno do caso, liberada pelo Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro, a pedido de Antonio Vieira de Mello, médico responsável pela cirurgia de varizes durante a qual Clara entrou em coma no mês de março de 1983.
Partindo da leitura atenta do processo e de entrevistas com toda a equipe médica envolvida, o biógrafo defende a tese de que não houve qualquer falha médica e que a cantora sofreu de uma reação alérgica (choque anafilático) ao receber a anestesia geral. A reação teria provocado um enorme edema no cérebro que teria lhe causado morte cerebral antes do término da operação.
A artista permanceu em coma, na Clínica São Vicente, por quase um mês até morrer, em 2 de abril de 1983.
A grande cantora Elizeth Cardoso, a "Divina", considerava Clara Nunes sua herdeira legítima. Alguns críticos a comparam até hoje a Carmen Miranda. Afinal, as semelhanças entre a Pequena Notável, portuguesa de nascimento, e a artista mineira são muitas: a origem humilde, a morte precoce, a paixão pelo samba e, sobretudo, a exuberância de suas apresentações, dos figurinos de influência afro-brasileira à expressividade de sua linguagem corporal.
Às vésperas do 25.º aniversário de morte da cantora mineira, que fez o Brasil parar em abril de 1983, a Ediouro está lançando o livro Clara Nunes A Guerreira da Utopia, biografia do jornalista carioca Vagner Fernandes, muito bem escrita e fartamente ilustrada. O livro, que tem tudo para ser um sucesso de vendas neste fim de ano, também serve como atestado não apenas da importância de Clara dentro do cenário musical brasileiro no século 20. Acima de tudo, o obra a reafirma como um dos mais perenes símbolos de resistência da cultura nacional de raiz.
Na segunda metade dos anos 70, a MPB, sobretudo o samba, havia sido praticamente banida das emissoras de rádio no país, dominadas pela música estrangeira. Os cinemas lotavam de gente louca para assistir ao rebolado de John Travolta em Embalos de Sábado à Noite e aos efeitos especiais embasbacantes do blockbuster Star Wars Guerra nas Estrelas. A novela Dancin Days, de Gilberto Braga, quebrava recordes de audiência, pegando carona na onda disco que se espalhava pelo mundo. Como conseqüência direta dessa invasão da cultura pop anglo-saxã, cantores e compositores desta esquina do planeta tinham de brigar por espaço, para serem ouvidos. Sambistas, então, nem se fala.
Apesar de a indústria cultural parecer estar conspirando contra a produção nacional naquela época, Clara permanecia soberana no topo das listas de LPs mais vendidos, álbum após álbum e à frente de estrelas como Maria Bethânia, Gal Costa e Elis Regina. Foi a primeira brasileira a romper a marca de 300 mil cópias comercializadas de um só disco e fez isso várias e sucessivas vezes ao longo da carreira. Acabou com o mito de de que cantora mulher fazia sucesso, mas não conseguia vender muitos LPs.
Apesar de todo esse êxito, Clara fez questão de ter papel fundamental na luta empreendida por nomes como João Nogueira, Candeia e Paulinho da Viola por mais espaço na mídia: foi uma das criadoras e grande militante do Clube do Samba, que, navegando contra a maré, ia às ruas em nome do direito do gênero musical brasileiro mais importante de existir e ser ouvido por seu público.
Pesquisa
O grande mérito de Fernandes é, além de ter ouvido amigos, parentes, namorados e artistas contemporâneos de Clara, haver buscado fazer uma rigorosa pesquisa tanto sobre a vida da cantora quanto a respeito do contexto histórico em que ela viveu procura situar o leitor no tempo e no espaço desde a infância pobre e sofrida de Clara no interior de Minas Gerais até o estrelato absoluto nas décadas de 70 e 80, no Rio de Janeiro.
A descrição da infância e adolescência de Clara, aliás, é uma das mais interessantes e detalhadas do livro. Ficamos sabendo, por exemplo, que a cantora perdeu tanto o pai quanto a mãe antes dos 6 anos e foi criada pelos irmãos e irmãs mais velhos. Também descobrimos que ela não completou sequer o ginásio (atual 8.ª série) e que, com apenas 14 anos, começou a trabalhar como operária de uma indústria têxtil em Caetanópolis (MG), localidade onde nasceu quando o município ainda se chamava Cedro da Cachoeira.
Nessa época, em plena década de 50, Clara tornou-se, involuntariamente, o pivô de um crime que mudaria para sempre o rumo de sua vida. Seu irmão mais velho, mais conhecido como Zé Chilau, matou com uma faca um namorado da futura cantora. A vítima, um don Juan consumado chamado Adilson, havia colocado o nome de Clara na boca do povo da conservadora Caetanópolis. Contou a quem quisesse ouvir que havia "tido intimidades" com a adolescente.
Embora anos mais tarde Zé Chilau tenha sido absolvido, sob a alegação de haver cometido o assassinato em defesa da honra da irmã, Clara teve de partir do interior para a capital, Belo Horizonte, onde anos mais tarde sua carreira de cantora daria os primeiros passos. Tudo para fugir da maledicência da cidadezinha.
Vagner Fernandes consegue, graças a uma habilidosa costura de depoimentos, documentos e citações de jornais, revistas e livros, reconstituir a trajetória de Clara. Do anonimato à fama. Dá especial atenção à procura da cantora por um estilo dos bolerões românticos ao casamento definitivo com o samba, passando por seu breve flerte com a Jovem Guarda. No cerne dessa transformação, o biógrafo usa dezenas de páginas de seu livro para falar do envolvimento de Clara com a umbanda e argumenta que essa aproximação foi determinante no processo de gênese da Clara mestiça e mística que entrou para a história da MPB e permanece viva no imaginário popular.
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Serviço: Clara Nunes A Guerreira da Utopia, Ediouro, 320 páginas, R$ 49,90.
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