Trabalhador em Ulianópolis, no Pará: a maioria da humanidade vive a luta compulsória pela sobrevivência| Foto: Paulo Santos/Reuters

Os vícios do ofício

Um açougueiro e um barbeiro enfrentam os ossos de suas profissões como missão, sem abrirem mão de certa dose de satisfação.

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"A ética do trabalho se enfraqueceu"

"Creio que vivemos hoje os resultados de duas grandes crises sucessivas no mundo do trabalho em sua dimensão simbólica", diz Luiz Sérgio Repa, professor de Filosofia da Universidade Federal do Paraná.

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Em defesa da preguiça

Mário de Andrade tinha 25 anos quando escreveu um texto de três páginas que publicou no jornal paulistano A Gazeta no dia 3 de setembro de 1918. O título: "A Divina Pre­­guiça". É um texto pouco citado e, desconfio, pouco lido.

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É mais fácil ser atingido por um raio do que ser feliz no trabalho. São poucos os fulminados pela sorte. Há também os que são felizes com o dinheiro resultado do que fazem – é com ele que conseguem o que querem quando têm tempo livre (se tiverem).

No século passado, mais do que nunca, você era o que fazia. Hoje, a ideia ainda persiste, mas disputa atenção com pelo menos mais uma: a de que o trabalho é um meio e não um fim. A felicidade está nas realizações permitidas pela forma como se ganha a vida. Expressão comum, mas contundente, "ganhar a vida" sintetiza a percepção mais corriqueira do trabalho, aquela que arrasta consigo um número expressivo de pessoas.

Fora das trincheiras, existem motivações como o sustento da família, a sensação de ser útil, a chance de fazer algo em vez de fazer nada, o fim de semana e as férias. O fato é que muitos não ganham o suficiente para tanto.

"Com o suor de teu rosto co­­merás o pão até que voltes para a terra", diz a Bíblia, no "Antigo Tes­­ta­­mento". Trabalhar para sobreviver deveria bastar como significado não fosse por um detalhe: "O desejo de atribuir significado ao nosso trabalho é uma parte inata e inflexível de nossa composição". Disse Alain de Botton no li­­vro Os Prazeres e Desprazeres do Tra­­balho (Rocco).

Para o filósofo suíço, o significado do trabalho está relacionado à possibilidade de gerar prazer ou reduzir o sofrimento dos outros. Nessa lógica, um médico se realizaria mais do que um advogado. De Botton dedica páginas para discorrer sobre um absurdo cotidiano, de que milionários se criam com a venda de objetos "menos significativos". Um empresário faz fortuna com biscoitos doces e crê na nobreza de sua função porque as bolachas dão prazer (o próprio autor admite experimentar conforto ao comer algumas delas).

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"A felicidade está associada à perspectiva de encontrar no próprio trabalho um meio de expressão da sua personalidade, e mesmo que os diferentes trabalhos possibilitem isso de maneiras diversas, não creio que haja trabalhos que simplesmente impeçam que isso ocorra", diz Luiz Eva, professor de Filosofia da Universidade Federal do Paraná.

Em alguma medida, você é o que você faz, mas isso não é tudo. O poeta carioca Alexei Bueno disse, em entrevista por email à Ga­­zeta do Povo, que a felicidade no trabalho é um mito para "99% da humanidade" que vive a "luta compulsória" pela sobrevivência.

"A felicidade sempre é mítica. O que não significa que não possa ser buscada. Precisamos de mitos para sobreviver", diz a psicanalista paranaense Priscila Robert. "Se o sujeito busca, decididamente, se encontrar no trabalho e extrair dele toda a sua realização, é possível que consiga criar algo valioso do ponto de vista social. No entanto, por mais palpável que seja o resultado, a alta expectativa pode gerar uma frustração ou sentimento de vazio."

Autor de Simples Filosofia (Roc­­co), o filósofo potiguar Pablo Ca­­pis­­trano cita Hannah Arendt (1906-1975), para quem o trabalho se torna obra quando vai além da vida do trabalhador e ganha relevância para muitos. "Mas não somos apenas o que fazemos, somos mais, somos também o que é feito conosco e o que emerge no momento do silêncio, na esfera do ócio criativo, do não fazer que cria e constrói", diz Capistrano.

O filósofo francês André Comte-Sponville trata da importância do trabalho no livro A Vida Humana (WMF Martins Fontes). "Trabalhar por trabalhar é loucura ou prisão", escreve. Ele argumenta que o trabalho é uma ne­­ces­­sidade, mas que ninguém o faria de graça. Por si só, ele não va­­le nada e causa desgaste. Por isso é pago e pontuado por tempos de descanso.

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"O trabalho é uma salvação só para os perdidos; é uma terapia só para os loucos. Para os outros, é o que deve ser: uma obrigação, uma necessidade quase sempre, uma disciplina com frequência e uma paixão às vezes, para os que gostam de seu ofício. Os que transformam o trabalho em felicidade têm muita sorte. Que não esqueçam, todavia, que é o amor que os salva, não o trabalho", argumenta Comte-Sponville.

O consultor de recursos hu­­manos Bernt Entschev, colunista da Gazeta do Povo, observa que ganhar bem pode não bastar. "Se o profissional não gosta do que faz, as chances de ter um mau de­­sempenho é muito grande", diz. A apreciação de uma atividade pode ser questão de tempo: "O que você não gosta hoje, pode lhe agradar amanhã e esse sacrifício vai valer a pena de alguma forma". Entschev acredita que o trabalho é significativo quando traz resultados tanto para a empresa quanto para o desenvolvimento do profissional e afirma que o trabalho caracteriza o indivíduo. "Sempre associarão nosso nome ao nome da em­­presa/profissão."

Passar oito, dez, 12 horas por dia desempenhando um trabalho que não se suporta é a imagem do inferno. Ter algum prazer com o que se faz é difícil, mas não impossível. Mesmo o trabalho perfeito tem lá suas dores de cabeça. Você é o que faz, mas não é só isso. E todo mundo precisa ganhar a vida de alguma maneira (férias e fins de semana são bem-vindos).