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Pepetela: desencanto com as ideologias, que atrapalham tudo e podem fazer ruir uma história de amor |
Pepetela: desencanto com as ideologias, que atrapalham tudo e podem fazer ruir uma história de amor| Foto:

O escritor angolano Pepetela fez uma espécie de acerto de contas com o seu passado no romance O Planalto e a Estepe. A obra de ficção, que acaba de ser publicada no Brasil, é assumidamente inspirada em fatos reais. A voz do narrador, Júlio, procura o tempo todo desmontar a visão de mundo do que um dia se chamou "esquerda".

O enredo apresenta o impasse de Júlio, estudante angolano, que durante a Guerra Fria recebe uma bolsa de estudos em Mos­­­­ cou. Lá, conhece e se apaixona por Sarangerel, filha de um todo-poderoso da Mongólia. Desde os primeiros contatos, o relacionamento é anunciado como inviável, porque eles são de orientações políticas incompatíveis. Júlio insiste. Sarangerel sabe que aquele amor está fadado ao fracasso.

A narrativa é construída a partir do ponto de vista de Júlio. Ele sabe tudo o que será narrado e, por esse viés, recua no tempo, avança em direção ao futuro e, de acordo com a pertinência do que precisa ser apresentado ou omitido, mantém a narração em um tempo presente.

A temporada do protagonista-narrador em Moscou se traduz em extenso espaço dentro da narrativa. O convívio de Júlio com outros jovens estudantes tem relevância no enredo. Afinal, no futuro, os ex-estudantes, já maduros, vão se revelar desiludidos com o sonho comunista. A desilusão do narrador (que é o próprio autor) em relação ao projeto socialista é uma constante diretamente nas linhas e também nas entrelinhas.

O desencanto dos personagens criados por Pepetela com a esquerda pode ser explicado da seguinte maneira: nos países em que houve experiências comunistas, como em qualquer tirania, apenas um ordenava e muitos obedeciam e, portanto, a proposta de um mundo igualitário, com oportunidades para todos, nunca passou de teoria (ou blefe para seduzir, e enganar, jovens sonhadores).

Pepetela foi guerrilheiro (mi­­litante do Movimento Popular para a Libertação de Angola), da mesma maneira que Júlio, o protagonista de O Planalto e a Estepe, também participa de conflitos bélicos no continente africano.

Angola, terra natal do escritor e do personagem central do romance, praticamente atravessou o século 20 em meio a guerras que aconteceram com o objetivo de tornar o país, de fato, livre. Ao inserir esse aspecto da realidade no livro de ficção, o escritor procura fazer uma versão, a mais particular, dos fatos, o que contribui para a afirmação, e mesmo invenção, da identidade angolana.

Se, como reza o clichê, o mundo gira, a vida do personagem avança e, em um futuro que ele nem poderia imaginar, Sarangerel retorna para ele.

"Tive uma infância feliz, livre. Vivi. Tive uma juventudade de luta por nobres ideias, persegui sonhos, vivi uma revolução empolgante. Tive um grande amor e desfrutei dele até mo impedirem. Quando a pretensa revolução desmoronou, assistindo eu a toda espécie de oportunismos, de ambições escondidas, de traições, a esperança louca nesse amor me deu força de desejar sobreviver, diferentemente de alguns homens bons que preferiram deixar-se morrer ou mesmo cometer o suicídio", diz a voz do narrador, em um dos momentos mais viscerais do romance.

O que Pepetela problematiza a respeito do contexto histórico de Angola também pode ser entendido sobre a situação brasileira: basta observar no que se transformaram os jovens co­­munistas, os su­­jei­­tos que, na década de 1960, di­­ziam que­­rer mu­­dar o mundo. Alguns da­­queles líderes trans­­formaram-se nos algozes que eles diziam querer combater.

No mais, as ideologias pa­­recem servir apenas para atrapalhar tudo, inclusive e sobretudo o amor. GGG.

Serviço

O Planalto e a Estepe. Pepetela. Leya. 188 págs. R$ 34,90.

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