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A cantora italiana Roberta Gambarini no palco do Mistura fina: despedida | Fotos/Ana Lúcia Bizinover
A cantora italiana Roberta Gambarini no palco do Mistura fina: despedida| Foto: Fotos/Ana Lúcia Bizinover
  • O trompetista Roy Hargrove – 15 anos com Dizzy

Rio de Janeiro - "Um dia emblemático," diria o filósofo de plantão:14 de fevereiro, Valentine’s Day, o Dia dos Namorados, que inspirou "My Funny Valentine", canção da dupla Rodgers & Hart, eternamente associada ao trompetista e vocalista cool & cult Chet Baker. Mas os vocais e o trompete nesta noite – a última do Mistura Fina, tradicional casa de shows que fechou as portas depois fazer história na noite carioca – estão a cargo de uma geração mais jovem e menos trágica: a cantora Roberta Gambarini (italiana radicada nos EUA) e o trompetista Roy Hargrove. Eles se conheceram na big band de Dizzy Gillespie e nos últimos anos montaram um programa duplo imbatível nos principais clubes e festivais de jazz do mundo.

Nesta noite, promovem seus novos CDs, ela So In Love; ele, Earfood. No Mistura Fina, a rotina (se é que existe "rotina" no jazz...) foi esta, em quatro dias de apresentação: Roberta abria com o trio rítmico de Roy – o veterano John Lee (15 anos com Dizzy) e seu baixo portátil, leve como uma guitarra, mas sonoro como qualquer baixo acústico; e os jovens Joe Holmes (debaixo dos dreadlocks dos seus cabelos mora um exímio pianista moderno), e Montez Coleman, um baterista versátil, suave nas vassourinhas e um dínamo nos andamentos mais fortes. A seguir, Roberta cede o palco para Roy (trompete e fluegelhorn) e Justin Roberts (sax alto).

Não há uma distinção precisa de instrumental e vocal entre os dois. Roberta incursiona pelos scats, usando a voz como um instrumento de sopro, imitando um trompete, que poderia ser o de Hargrove, em "Estate", com as mãos em concha sobre o microfone. E, inversamente, Roy aparece quase como um cantor em baladas executadas ao cálido fluegelhorn, como "Speak Low" e "Never Let Me Go". Ele segue o sábio Axioma de Lester Young, de que todo instrumentista de jazz, ao tocar um standard, deveria conhecer a letra para impor o máximo de expressividade à canção. O velho sax-tenor Lester – morto há 50 anos com 49 de idade – viajava sempre com uma vitrola portátil e uma coleção de discos de Sinatra.

Havia mais, ainda, nesta noite "emblemática". Era a data exata proclamada pelos "malucos-beleza" da década de 1960 para o ingresso da humanidade na Era de Aquário: "Quando a Lua estiver na sétima casa e Júpiter se alinhar com Marte, a paz guiará os planetas e o amor moverá as estrelas." E, ainda mais, à meia-noite os relógios atrasariam, devolvendo aos brasileiros aquela hora roubada em 19 de outubro de 2008.

O jazz sempre se preocupou muito com o tempo. O set de Roberta começa com "Day In, Day Out", uma canção de fossa que diz: "dia vai, dia vem, não preciso dizer como meu dia começa..." "Estate", que ela aprendeu em Milão com o autor da canção, Bruno Martino, conta uma história de amor que nasce e morre no verão, e termina com raiva: "Oddio l’estate/ Odeio o verão!"

Exímia garimpeira de repertório, Roberta pesca uma canção americana de 1916 inspirada na ópera de Puccini, "Poor Butterfly"; "The moments pass into hours, the hours pass into years/ Os momentos passam em horas, as horas passam em anos". O tempo também está presente nas letras invisíveis das baladas que Roy toca ao fluegel, como em "Never Let Me Go": "There’d be a thousand hours in a day without you, I know/ Haveria mil horas num dia sem você, eu sei." E, mais do que nunca, no clássico "Speak Low", música de Kurt Weill e letra de Ogden Nash: "Time is so old and love so brief, love is pure gold and time a thief / O tempo é tão velho e o amor tão breve, o amor é ouro puro e o tempo um ladrão". Em "Speak Low", que começa com a frase Speak Low when you speak love, Ogden Nash foi buscar inspiração em outro poeta, Shakespeare, que escreveu em Much Ado About Nothing (1600): "Speak low if you speak love/ Fale baixo se fala de amor."

"Depois que esteve no Mistura Fina," confessa Roberta, "você sente saudade para sempre." Não só os músicos, os jazzófilos também. As horas passam lá fora, o show se reflete nos janelões entremeado com as palmeiras do Arpoador, assim como os shows do antigo Mistura se refletiam nas amendoeiras da Lagoa. E o tempo – este "Grande Ladrão" – leva tudo embora, mas os sons fugazes e perenes do jazz, acabam ficando para sempre na memória.

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