A noção pré-concebida sobre artesanato nos leva a associar os artesãos à imagem de pessoas de classes menos favorecidas, desprovidas de conhecimento geral e educação formal. Em parte, isso corresponde à realidade. Mas o que dizer de um professor universitário que se debruça horas para montar um colar, de um ator que cria bonecas exclusivas em feltro, de um chef de cozinha que faz questão de dar seu toque em a prato que custa R$ 150, de uma artista plástica que mantém as tradições da família, traçando linhas delicadas sobre um ovo que se transformará em uma pêssanka, única e cheia de simbolismo?
Muito do que é encontrado hoje à venda em lojas de design tem o poder de emprestar a quem o adquire o caráter da diferenciação. O colar no pescoço, a boneca Genoveva sentada displicentemente na sala de estar, o jantar em um restaurante da moda e a opção de poder dar um presente que surpreende pela originalidade nos faz sentirmos menos iguais. "Quanto se é um sujeito, você quer se rodear de coisas que têm a ver com você", observa a professora de Design Virginia Borges Kistmann.
Essa parece ser a tábua de salvação deste trabalho milenar. O consumidor do feito à mão entende os códigos e, consequentemente, valoriza o resultado de todo o processo. De diferente, esse artesão sofisticado tem a consciência de que pode mudar o estado das coisas com a habilidade de suas mãos.
Formado em Engenharia Civil e Letras, Benedito Costa Neto teve um momento de embate particular quando veio o desejo de se tornar designer de acessórios.
"O trabalho manual dá uma certa vergonha, parece subalterno, é ligado a uma pessoa que não se poliu. Mas assumir isso mudou minha vida", diz ele, que faz questão de empregar montadoras que vêm de comunidades carentes. Da formação erudita, ele tira as referências para criar colares que a cada coleção têm como ponto de partida uma etnia. Costa Neto, que assina o artigo abaixo, diz que o feito à mão abriu portas para ele além de professor para turmas de Letras, agora também dá aula na faculdade de Design e acredita que essa é a chance de se estabelecer uma forma mais ética de produção. "Sempre quis montar um trabalho com comunidades de baixa renda, usar o expertise dessas pessoas e transformar em algo de designer."
Dons
As bonecas feitas pelo ator Carlos Monteiro Filho, o Calu, são um barato. Coloridas, posers, só faltam falar. São as filhas de Calu, a quem ele dá nomes "de avó" como Genoveva e Zuleica. Elas não interessam apenas às crianças: são compradas por adultos que querem levar um pouco de irreverência para casa. Na infância, Calu se divertia orbitando no universo de tecidos e roupas da mãe, estilista. Agora, consegue ficar 12 horas sentado para dar vida às suas "filhas". A ideia é tornar o Agulheiro, como Calu batizou sua marca, de hobby a fonte principal de renda.
O fazer com as mãos já não é problema monetário para o chef de cozinha Celso Freire. Você já deve ter ouvido falar dele. Neste momento em que a gastronomia é moda, Freire é uma grife nacional. Ainda assim, é com humildade que ele diz dever tudo às mãos. Também não se mostra deslumbrado com a "fama". E embora o trabalho seja duro, ele acredita as mãos são uma forma de concretizar a inspiração. "Encantar com espuma e caviar, é fácil. Mas encantar com a simplicidade, só tendo o dom."
A permanência do bem-feito
Quem consome artesanato sabe diferenciar uma peça com apuro estético e bom acabamento de outra mal-acabada, cuja criação não seguiu critérios objetivos, apenas a intuição. Antonio Razera Neto, que atualmente coordena o curso de Design Projetos de Produtos da Universidade Positivo, já trabalhou com caiçaras de Ilha Rasa e Salto Morato (litoral do Paraná), que faziam objetos de artesanato como há centenas de anos. Os projetos tinham como objetivo mostrar para essas comunidades como transformar aqueles utilitários em peças que gerassem renda. Para eles, esse planejamento significa uma quebra de paradigma. "Esses artesãos têm um nível cultural que dificilmente atinge o turista. Sua noção estética geralmente está ligada ao religioso. O design mostra que ele tem de produzir com algumas questões para atender ao público."
Razera, entretanto, não tira a relevância do artesanato primitivo. Para ele, há pessoas que percebem que o valor não está em se ter uma peça superproduzida comercialmente, mas que foi manipulada pelo homem, que houve erro e que esse erro faz parte do processo, dá qualidade ao produto. "Agora, se você vai a uma loja comprar uma xícara e ela tem um risco, ela é descartada. Aí não é qualidade, é defeito."
Os imigrantes ucranianos que levam a tradição de pintar pêssankas são um contraponto ao que Razera se refere. Muito embora as pêssankas ainda sejam pintadas como há centenas de anos, os artesãos atuais chegam a um primor que beira a perfeição. "É difícil encontrar duas pêssankas iguais", diz Tetianna Bachtzen, de 73 anos. Aldeã, a mãe de Tetianna lhe passou os ensinamentos básicos, mas foi no Brasil, que a artesã fez cursos e passou a pesquisar desenhos e pigmentos. Hoje, as duas filhas também pintam pêssankas, cuja venda ajuda na renda, além de unir as mulheres da família Bachtzen, que ficam horas a fio debruçadas sobre esses valiosos ovos.
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