A música eletrônica merece atenção. Isso não significa dizer que os artistas do gênero estejam carentes de espaço ou de público, pelo contrário. Cada vez mais, DJs profissionais tornam-se personalidades famosas e muito bem remuneradas - seus cachês podem chegar até 40 mil dólares.
Essa realidade pôde ser vista de perto no último sábado (16), na Pedreira Paulo Leminski, que recebeu pela terceira vez o Warung Day Festival. O evento reuniu atrações nacionais e internacionais, levou oito mil pessoas para dançar durante dez horas, exibiu uma estrutura funcional e decoração sóbria, com pequenas inserções psicodélicas.
Se de um lado, a música eletrônica goza de um gradual aumento de oferta e demanda, de outro, sua repercussão não transcende os nichos. A autossuficiência econômica talvez explique o centrismo desta produção artística, mas há também fatores externos.
Uma das atrações do festival, o DJ e produtor Ricardo Albuquerque, disse, em entrevista à Gazeta do Povo, que existe uma mudança de hábito entre os brasileiros, cada vez mais atentos à música conceitual, mas reconhece as resistências.
“Esse nicho se ampliou, mas no Brasil a anticultura ainda é muito forte. O que noto também é que a maioria dos brasileiros nunca teve a oportunidade de vivenciar festas de música eletrônica que realmente a toque”, explica.
Visão conservadora entre os músicos
No campo das ideias, entre amantes, especialistas e profissionais da música, existe uma certa visão conservadora, que vê na instrumentação eletrônica e na sua estética motivos de arte menor.
Para o músico e produtor Bruno Kayapy, guitarrista da banda Macaco Bong, com o passar do tempo, desde o período clássico, a música eletrônica provou que é o estilo mais influente em toda a história da música, além de revolucionária, pois rompe com o sistema tonal de Bach.
“Neste gênero (música eletrônica/noise music) você troca o uso do toque de notas musicais por modulações de frequências, ou seja, o que a música clássica ensinou diante de notas musicais, a música eletrônica ensina da mesma forma e já desenha o futuro da música, substituindo a nota musical pelo ruído tonal. Portanto jamais deve ser encarada como um tipo de arte menor. Ela está avançada em muitos sentidos”, defende Kayapy.
É claro que a legitimidade e as virtudes de uma obra não dependem de aprovação externa. Mas entre outras coisas, o espaço a que se nomeia mainstream deve ser ocupado por produções que merecem atenção, acolhidas por argumentos que estimulem seu entendimento.
Mais alto que o Motörhead
A música eletrônica é festiva, executada em níveis de decibéis de dar inveja ao Motörhead (considerada a banda mais barulhenta do mundo), composta por elementos sintéticos, mas não menos introspectiva, melancólica e romântica. Sua experiência, inclusive, flerta com a espiritualidade.
Essas são algumas das asserções cabíveis aos sets que embalaram o Warung Day, com variações de teor para cada DJ.
“As vertentes são várias, cada artista traz consigo gravações que coleciona por onde passa e alguns expressam sua arte criando sons na hora, no que chamamos Live. Dentre algumas vertentes deste sábado, ouvi Techno, House, Tech House, Progressive House, Deep House, Dub Techno e Electrônica, esse último um dos mais emergentes do momento”, esclarece Albuquerque.
A festa
Dentro da seleção natural imposta pelo valor dos ingressos e da água vendida a dez reais, é possível dizer que, se comparado a outros festivais de mesmo porte, o Warung Day Festival é uma festa democrática.
Isso porque no último sábado, a Pedreira recebeu pessoas de diferentes gerações, alguns beirando a terceira idade. Dividido em três palcos, o Festival é uma grande celebração da música eletrônica. Ela está em todos os lugares. À beira do lago, onde o dragão e os hipopótamos decorativos parecem vivos, o público pode descansar nos assentos espalhados pela margem.
É possível dançar ali mesmo, apreciando a música com certa distância. Mas para uma experiência plena, é preciso mergulhar no interior de um dos stages. Só assim é possível sentir a vibração dos graves encostar a pele.
Na Pedreira Stage, a decoração remetia à arquitetura do “templo da música eletrônica”, o Warung Beach Club. Ali passaram oito DJs, entre eles, o alemão Recondite, que apresentou um elegante set live de Techno e Deep House.
O belga LouLou Players, antigo conhecido do Warung, lotou o Garden Stage com um Techno House cheio de linhas vocais e temas ensolarados. Além dele, outros dez artistas se apresentaram no pequeno palco à margem do lago.
Ornamentado por gigantes dragões coloridos, o Warung Stage determinou o encerramento da festa com a apresentação da dupla alemã Tale of Us. Conhecidos pela organicidade de seus samples, colhidos em meio à natureza, o duo impressionou o público com graves gordurosos e ruídos que invocavam os espíritos da floresta.
Sem dúvida, o Brasil ocupa um lugar de prestígio no roteiro internacional de música eletrônica, mas há conquistas pela frente. “Faltam apenas DJs brasileiros figurando entre os grandes nomes mundiais e mais clubs de ponta para que possamos realmente ser considerados fortes no meio. Já há um crescimento sem igual em ambos, mas a estrada é longa”, assegura Albuquerque.
O rito
O ambiente segue o ritual dos grandes clubes, com a diferença da paisagem cinematográfica e o ar puro da Pedreira. As pick-ups dos DJs ficam “ilhadas” entre pista, camarotes e combos caríssimos de bebidas alcoólicas. Mas ainda assim, o que mais se vende lá dentro é água. Por isso, os dez reais por garrafinha.
Apesar do inerente clima festivo, existe em paralelo uma introspecção coletiva. Quem está na pista se concentra na música. A interação acontece por meio de olhares e sorrisos. Para dançar livremente, é necessária uma área mínima. Esta área é entendida como direito e por isso, é respeitada. Há espaços largos entre um e outro mesmo em frente à grade que separa público e artista. A livre expressão corporal é condição institucionalizada nos circuitos eletrônicos.
Como escreveu Tales Ab’ Sáber em seu livro “A Música do Tempo Infinito”, “o músico tecno se move o tempo todo. Seu corpo pulsante é parte constitutiva do espetáculo (...) espécie de Sísifo do nosso tempo.”
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