Vídeo:| Foto: RPC TV

"Eu diria que a violência, o autoritarismo na relação entre as pessoas, sobretudo nesse tumultuário início de novo milênio, é a marca, a mácula, o pecado original dos humanos. Fico chocado com a banalidade com que o fascismo nosso de cada dia se faz presente no cotidiano de nossas vidas", desabafa Wilson Bueno.

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O escritor paranaense acredita que o fascismo habita todo ser humano. Na essência, o tema é kafkiano e perpassa toda a narrativa de A Copista de Kafka, novo livro do autor que teve os seus Cachorros do Céu entre as dez obras mais importantes do ano passado no Prêmio Portugal Telecom.

"Kafka é e sempre foi uma de minhas obsessões. Com ele aprendi o que é ser livre em literatura. Aliás, talvez o maior legado kafkiano seja este mesmo – o de ampliar fronteiras, o de conferir ao "espaço" da criação literária, a mais absoluta mobilidade", afirma Bueno.

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O checo Franz Kafka (1883 – 1924) é um dos escritores mais importantes do século 20 (e de todos os tempos). Dono de uma obra claustrofóbica e paranóica, criou uma das imagens mais impressionantes da literatura em apenas um parágrafo, o que abre A Metamorfose: "Uma manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregor Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto".

Não por acaso, este clássico é o Kafka favorito de Bueno. "Por tudo o que nessa acabada obra-prima é a perfeição da síntese."

Misturando realidade e ficção, o autor conta a história da relação conturbada de Felice Bauer (que existiu de fato) com Kafka. Ela, uma alemã que se aproxima do escritor para trabalhar na função de copista e acaba se tornando sua noiva.

Embora seja encarado como um romance, o livro é antes uma série de pequenos textos que, à primeira vista, parecem independentes entre si. A narrativa é inclusive pontuada por aforismos. Um deles está ligado a idéias caras para Bueno e diz "De irrealidade em irrealidade, desbastar o real até atingir a mais pura realidade".

"Sem dúvida, não entendo a literatura de outro modo senão o de uma busca acossada, cheia de urgências, tensa, do real. E só a literatura, me parece, capaz de nos mergulhar na ‘irrealidade’, de tal modo e maneira, que não há outro jeito que não seja este para chegar ao real mais imenso", diz.

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Bueno procurou destrinchar a biografia de Kafka, revelando detalhes pouco conhecidos. "Brinco, por exemplo, e sofro junto, com ‘Carta ao Senhor M.K. ou o Corcunda’. Pois pouca gente sabe o quanto Kafka se preocupava e temia ficar corcunda. Mais: julgava os humanos indignos da posição ereta, esta que vivemos a alardear como se fôra um triunfo."

Ao criar ficção a partir de fatos históricos, A Copista de Kafka se aproxima de obras como As Horas, de Michael Cunningham, que cita Virginia Woolf, e o recém-lançado Sr. Pip, de Lloyd Jones, ligado ao universo de Charles Dickens.

"Acho que vivemos um saudável momento de recuperar o que há de mágico no fazer literário, no ofício mesmo de lidar com o que se escreve. Há essa coisa, também, em mim quase um estigma, de decifrar a arquitetura alguma vez antológica dos grandes mestres. Woolf, Kafka, Whitman, Dickens são exemplos vivos de que a literatura, ao se servir da imaginação humana, amplia a existência."

Bueno completa 60 anos em 2009 e vê A Copista de Kafka, seu 14.º trabalho, como o livro de sua maturidade. "Diversas razões convergiram para este, digamos, momento de minha história literária. Perdas, iminências de perdas, a constatação dolorosa, às vezes, de que já vamos dobrando o cabo da Boa Esperança, eu e toda a minha geração. Escrever deixou de ser um exercício frívolo, não escrevo mais pela vaidade de um nome, mas porque escrever, a essas alturas do campeonato, me salva de mim mesmo."

Apesar da expectativa que pode ter sido criada pela boa recepção crítica de Cachorros do Céu, o escritor nascido em Jaguapitã, no norte do estado, afirma que, se existe uma pressão sobre sua escrita, ela vem sempre de projetos futuros. "É que eu estou sempre dois livros à frente."

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A julgar pelas afirmações nas orelhas de A Copista de Kafka, este deve ser tão saudado quanto o livro anterior. Quem escreve a apresentação elogiosa é o escritor e tradutor Boris Schnaiderman, conhecido por verter ao português clássicos russos de Dostoievski e, mais recentemente, Gorki (entre vários outros).

Schnaiderman defende que o romance de Bueno seria "quase impossível anos atrás". "Haveriam de exigir-lhe fidelidade a um gênero definido, cobrariam dele a diferenciação entre o romance e o conto", escreve, para depois saudar a obra como "verdadeira criação de nosso século, com nossas ambigüidades e descaminhos, mas com a realidade fluida, aliciante, que ele soube engendrar".

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Serviço: A Copista de Kafka, de Wilson Bueno (Planeta, 200 págs., R$ 35).