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Aurora boreal na Groenlândia, em fotografia de 2013, um dos vários lugares em que o fenômeno pode ser visto (Finlândia, Islândia, Suécia, Noruega, Canadá e Escócia também estão na lista). | Mads Pihl/Creative Commons
Aurora boreal na Groenlândia, em fotografia de 2013, um dos vários lugares em que o fenômeno pode ser visto (Finlândia, Islândia, Suécia, Noruega, Canadá e Escócia também estão na lista).| Foto: Mads Pihl/Creative Commons

Contexto

As luzes da aurora boreal são visíveis à noite em regiões árticas, no hemisfério norte (no sul, nas regiões antárticas, elas levam o nome de aurora austral). O fenômeno, também chamado de aurora polar – termo que funciona para os dois extremos –, pode ser em arcos, faixas ou raios e tem origem no impacto de partículas de vento solar (elétrons e prótons vindos do sol) contra a atmosfera terrestre.

Foi no fim dos anos 1980 que vi a aurora boreal pela primeira vez. Eu tinha 18 anos e havia me mudado para uma ilha no extremo norte da Noruega para trabalhar como professor numa escolinha em um dos pequenos vilarejos da região.

O vilarejo ficava à sombra de uma cadeia de montanhas íngremes e áridas que davam para o Oceano Atlântico. Menos de 300 pessoas viviam nele e quase todas elas estavam envolvidas com pesca, trabalhando como pescadores em embarcações pequenas ou nos depósitos de peixes. Era um lugar desprotegido.

Numa noite, ventos fortes destruíram um telhado e tombaram um trailer; algumas das construções foram amarradas com cabos de sustentação.

Tudo vinha do mar: o vento, as nuvens, a chuva, as ondas e o peixe – em torno dele girava a vida no vilarejo.

Poucas casas tinham jardins; não havia nenhuma barreira entre a civilização e o mundo natural. Quando você abria a porta, a sensação era de que estava se embrenhando na natureza e isso deixou marcas nas pessoas que viviam lá.

A vida social era diferente da que eu estava acostumado a ter. Era mais crua e muito mais direta, porém era também mais calorosa e envolvente. Talvez porque não houvesse muito mais – apenas algumas casas perto do mar – e porque os que viviam lá dependiam uns dos outros.

Dez anos mais tarde, escrevi um romance que se passava naquela região e a memória que guardei comigo – fora a da realidade social bizarra em que me envolvi pouco depois de ter me mudado para lá –, a memória que passou a fazer parte do meu corpo foi a reminiscência da luz.

Oh, a luz do Ártico, como ela delineia o mundo de maneira concisa, e com uma clareza sem igual: as pontas das montanhas irregulares contra o céu azul sem nuvens, o verde dos declives, os barquinhos estalando ao chegar ou ao sair do porto e, a bordo, o gigantesco bacalhau pescado das profundezas, com sua pele branca acinzentada e olhos amarelos encarando o vazio; ou os varais em que milhares de bacalhaus são dependurados, secando lentamente para depois serem embarcados rumo às terras do sul. Tudo funcionava com precisão.

Chegava o outono e, com ele, a noite ia encurralando o dia, que se tornava menor e menor. Em pouco tempo, ele passava a durar apenas algumas horas, como se estivesse entre duas paredes escuras que se fechavam gradativamente até que a escuridão tomava conta de tudo.

Exceto pelo brilho fraco de uma luz azulada no meio do dia, era escuro o tempo inteiro, e viver e trabalhar nesse tipo de escuridão, um tipo de noite sem fim, afeta a relação de qualquer um com a realidade; ela se torna surreal, soturna, como se o mundo tivesse acabado.

É quando a aurora boreal surge, é quando esses grandes véus de luz recobrem o céu e, mesmo se você entende o que é o fenômeno e por que ele ocorre, ainda é uma visão misteriosa, imensamente estranha.

A primeira vez que eu a vi, estava num carro com um amigo meu. Nós paramos, saímos do carro e ficamos imóveis, olhando, no meio do nada, encantados como animais debaixo de um feixe de luz.

A aurora boreal obriga você a olhar para cima. É impossível ignorá-la. Um fenômeno simples, de raios que atingem a atmosfera, tão misterioso quanto o feixe de luz de uma lanterna – no entanto, as luzes dão a sensação de que você está no extremo do mundo olhando para o universo vazio e sem fim em que estamos todos adernando.

Para quem vivia nessas ilhas, as luzes faziam parte do cotidiano. Mas não o sol.

Depois de meses de escuridão completa, o momento em que o sol aparecia pela primeira vez era quase de reverência e, durante a primavera e o verão, quando toda a escuridão desaparecia e o sol brilhava no céu dia e noite, às vezes vermelho como sangue, o ânimo daquela comunidade minúscula era exultante; as pessoas saíam à noite, ficavam acordadas e bebiam. Era incrível, mas também parecia perigoso, porque a divisão entre o dia e a noite é uma fronteira, talvez a mais fundamental que temos, e lá no norte ela foi abolida, primeiro numa noite sem fim, depois num dia sem fim.

Karl Ove Knausgård é o autor do romance autobiográfico Minha Luta, dividido em seis volumes e com mais de 3,5 mil páginas. A tradução brasileira de Minha Luta 3 – A Ilha da Infância sai neste mês pela Companhia das Letras.
Tradução de Irinêo Baptista Netto.
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