Há apenas um único televisor em Litchfield, a penitenciária fictícia sobre a qual se centra “Orange Is the New Black”, e geralmente ela é motivo de discussão entre as presas. Apesar de algumas delas quererem entretenimento, de vez em quando também chegam algumas notícias. A quarta temporada está mais do que nunca sintonizada com o mundo que fica além da prisão, na medida em que a série trata de questões sociais – sobretudo de liberdades civis e raciais – de dentro para fora.
No primeiro episódio dos 13 que compõem esta temporada (lançados todos ao mesmo tempo nesta sexta-feira, dia 17), a Litchfield recebe a chegada de muitas presas novas – uma das várias consequências da privatização do que antes era uma instituição federal, vendida para a Management & Correction Corporation (MCC). Aleida Diaz (Elizabeth Rodriguez), uma das presas que não tem papas na língua, explica do seguinte modo: “É, putada, chegou a hora da lata de sardinha. A gente é uma prisão privada agora. A gente não é gente mais. A gente é mercadoria no atacado”.
Nesta temporada não faltam risadas, nem frases de efeito poderosas, mas ela também é pesadíssima. Tenham lencinhos à mão, e alguma bebida alcoólica também ajuda (estou sendo vaga de propósito aqui, já que a Netflix prometeu que quem divulgasse certos pontos do enredo seria “disciplinado”).
Líder de audiência
Quando “Orange Is the New Black” foi ao ar pela primeira vez em 2013, a série inseriu a Netflix como um dos grandes atores na trama da programação original. Já posso até escutar as reclamações do público (cada vez menor) dos fãs de “House of Cards” (que foi ao ar pela primeira vez alguns meses mais cedo, no mesmo ano). Mas, por volta do fim do seu primeiro ano no ar, “Orange Is the New Black” se tornou a série mais assistida de todos os tempos da rede, pelo menos segundo a Netflix, que não revela seus índices de audiência. É mais difícil quantificar, porém, a dose generosa de sensibilidade que caracteriza a série, proveniente de seu elenco variado e de uma mescla cuidadosa de comédia e drama nos roteiros, como parte do trabalho da criadora da série, Jenji Kohan.
“Orange Is the New Black”, baseada no livro de memórias de mesmo nome de Piper Kerman (2010), tomou algumas liberdades ao adaptar o material que a inspirou. Piper Chapman (Taylor Schilling), a personagem inspirada por Kerman, não é sequer a principal estrela da série. É difícil escolher uma só personagem entre tantas favoritas entre os fãs (Taystee, Morello, Poussey, Maritza, Big Boo e Red – só para dar alguns nomes). Piper está entre as menos interessantes em Litchfield, e, para a sorte do seriado, ele mesmo parece ter se dado conta disso logo no começo.
Mas a essência da história de Kerman – uma mulher de classe média, branca, e com educação formal cumprindo pena numa prisão de segurança mínima com outras mulheres cujas histórias de vida têm diferenças imensas em relação à dela – continua sendo um tema consistente e de destaque, sobretudo nesta temporada agora.
Identificação do público
“Orange Is the New Black” é um daqueles raros casos de seriados que você poderia pegar qualquer amostra da população dos EUA para assistir e aconteceria de todo mundo se identificar com alguma personagem (seja em aparência ou afeto). A série foi elogiada por suas representações genuínas de relacionamentos lésbicos e bissexuais e pelo papel de Laverne Cox, que foi indicada ao Emmy, como Sophia Burset, uma presa transsexual, cuja narrativa nesta temporada enfatiza a falta de compaixão que as outras presas e a administração demonstram por ela.
A diversidade de OITNB, junto com os flashbacks da série, que muitas vezes revelam as motivações comoventes por trás dos crimes que as presas cometeram, ajudam a criar empatia com as personagens. Essas mulheres poderiam muito bem ser qualquer uma de nós.
Na terceira temporada, OITNB chegou num ponto complicado do seu estágio de maturidade – a série continuava sólida, mas sofria para arranjar novos desenvolvimentos para a história e acabou se concentrando em enredos que simplesmente não eram tão interessantes. Mas, se você estiver se sentindo tentado a desistir da série, pode ir parando. A última temporada terminou com a fuga da maioria das presas de Litchfield após uma paralisação dos carcereiros. As mulheres escaparam por uma brecha na cerca e foram parar num lago próximo, onde puderam aproveitar alguns momentos de relativa liberdade. O primeiro episódio desta temporada acompanha o caos que continua em Litchfield, com muitas das presas ainda à solta e Piper andando como se fosse dona do lugar, comemorando o sucesso de ter conseguido se livrar de um ex-casinho que se tornou sua maior inimiga, Stella (Ruby Rose), que acabou enviada para uma prisão de segurança máxima.
“Eu sou gangsta, tipo, assim com A no final”, diz Piper a uma colega, que passa por ela no caminho para o lago. Uma outra presa, bisbilhotando, devidamente acha graça da declaração.
Contrabando de calcinhas
Joe Caputo (Nick Sandow), que passou anos como diretor assistente da prisão, está no comando agora (título oficial: diretor de atividades humanas). Para controlar o desastre, a MCC manda o agente penitenciário de segurança máxima Desi Piscatella (Brad William Henke), que parece ter acabado de sair do set de um remake de G. I. Joe, e logo impressiona Caputo com sua abordagem severa para manter a ordem e protocolo na penitenciária. Para substituir os guardas que foram embora, Caputo e seus colegas contratam veteranos do exército – o que rende descontos tributários à MCC. Os novos guardas têm os benefícios de moradia in loco, como parte das estruturas antigas mantidas pelo trabalho das presas. “Este lugar é que nem o ‘Viciados em Reformas: Edição Litchfield’, só que, tipo, com viciadas de verdade”, comenta Tasha “Tayshee” Jefferson (Danielle Brooks).
A equipe de veteranos de Caputo está familiarizada já com o nível de disciplina exigido por Piscatella. Mas os guardas que continuaram ainda da temporada anterior estão menos preparados, incluindo Baxter Bayley, o carcereiro com cara de jovenzinho que acabou envolvido no esquema ilegal de Piper de contrabando de calcinhas usadas e que acaba ficando ainda mais sufocado sob a nova direção corporativa. Há ainda Luschek (Matt Peters), o eletricista moralmente corrupto da penitenciária, e o Oficial Coates (James McMenamin), o guarda que estuprou Tiffany “Pennsatucky” Doggett (Taryn Manning), enquanto a acompanhava em suas atividades. O modo como OITNB lidou com o estupro de Pennsatucky na temporada anterior foi elogiado, e nem a série, nem a colega de cela de Pennsatucky, Carrie “Big Boo” Black (Lea DeLaria), esqueceram o trauma da violência cometida contra ela. Os desenvolvimentos desta temporada no tocante a isso são ao mesmo tempo complexos, perturbadores e de partir o coração.
Segregação racial
Um dos aspectos da vida em Litchfield que tem mantido a consistência em seu realismo é a autossegregação entre presas brancas, negras e latinas. É uma divisão tão rígida, aliás, que tem rendido piadas recorrentes sobre onde se encaixam as outras, como a meio japonesa Brook Soso (Kimiko Glenn).
A superpopulação reforça essa tensões raciais. A “família” predominantemente branca de Galina “Red” Reznikov (Kate Mulgrew) não é branca o suficiente para muitas das novas presas brancas mais militantes. Mesmo a população latina, que agora é a maioria, se vê diante de divisões internas por ilha ou país – sobretudo entre Porto Rico, a República Dominicana e o México.
O conflito leva Maria Ruiz (Jessica Pimentel) a ter flashbacks. Maria é dominicana e acabou se distanciando do seu pai por conta do preconceito que ele tinha em relação a mexicanos. Seus esforços para manter suas colegas latinas unidas a levou a uma disputa contra Piper – num desenvolvimento do enredo que segue em banho maria por alguns episódios e depois ferve.
Os flashbacks são uma parte essencial de OITNB e estão particularmente poderosos nesta temporada. Como é provável que os fãs já tenham adivinhado, Maritza Ramos (Diane Guerrero), a mestre residente de Litchfield em matéria de lápis de olho puxado, não é tão sonsa quanto parece. Também teremos algumas revelações acerca do passado criminoso de Blanca Flores (Laura Gómez), a presa desgrenhada que costumava dominar os banheiros para conversar com seu namorado, que atende por Diablo, num celular de contrabando.
Religião
A quarta temporada se destaca ainda pelo modo como trata do tema de distúrbios mentais. Após termos visto de relance partes da infância de Suzanne “Crazy Eyes” Warren (Uzo Aduba, num papel que lhe rendeu um Emmy), enfim vemos como se deu o seu crime num flashback, que mostra as consequências devastadores de sua falta de controle de impulsos.
A paranoica Lolly Whitehill (Lori Petty), com suas teorias da conspiração, ganha mais espaço agora, para o bem do seriado. Um flashback, que conta com uma escolha brilhante de elenco (Christina Brucato como Lolly aos 20 e poucos anos) traz sua paranoia em foco e cria um paralelo com a história de fundo de outra personalidade de Litchfield – o sofrido assistente social da penitenciária, Sam Healy (Michael Harney). Uma cena mais recente nos dá os motivos enfurecedores do porquê Lolly ainda estar presa – e ajuda a firmar esta temporada como sendo a mais forte do seriado em termos de comentário social. A tragicomédia de “Orange Is the New Black” exige um equilíbrio delicado, e a quarta temporada nem sempre acerta a mão, apesar de a maioria das piadas ainda serem engraçadas. Black Cindy, quero dizer, Tova (Adrienne C. Moore), que passou pelo episódio memorável de sua conversão ao judaísmo na última temporada, utiliza os parcos itens de escritório disponíveis para criar uma mezuzá para o seu beliche, que ela partilha com uma novata muçulmana.
Drama ou comédia?
Os episódios mais irritantes giram em torno da chegada da presa mais antecipada de Litchfield: a chef profissional e apresentadora de TV Judy King (Blair Brown). O seriado se esforça demais para tentar retratar Judy como uma “Southern belle” atrevida com tendências meio Paula Deen, mas para mim parece forçado demais. No entanto, a estadia de Judy em Litchfield, que conta com mimos para a personagem, também destaca as desigualdades de classe e raça do sistema.
“Orange Is the New Black” se tornou motivo de discussão no ano passado nos Emmys, quando a Academia de Artes e Ciências Televisivas decidiu que ela não poderia mais competir na categoria de comédia. A Netflix recorreu da decisão e perdeu, e agora “OITNB” se encontra firme na categoria de drama.
A quarta temporada, de fato, parece mais dramática do que nunca, o que não é ruim. “Orange Is the New Black” nos apresentou uma multidão de personagens que não costumamos ver na televisão e conferiu a elas relações íntimas e complexas, que falam muito sobre problemas que não estão confinados apenas às paredes impenetráveis da penitenciária.
Para uma série que sempre lidou com questões de privilégio e poder, não deixa de ser assombrosa a trajetória mais tensa tomada nesta temporada – tão assombrosa quanto inevitável.
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