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Equador

A Constituição do Equador (2008) foi a primeira no mundo a reconhecer taxativamente a natureza como sujeito inalienável de direitos. Já em seu preâmbulo, o texto reza que "a natureza, La Pachamama, da qual somos parte, é vital para a nossa existência", e depois indica a construção de "uma nova forma de convivência cidadã, na diversidade e harmonia com a natureza, para alcançar o bem viver, o sumak kawsay [expressão quéchua, língua dos povos originais do Equador, que significa "viver plenamente"]."

Depois em um capítulo chamado "Direitos da Natureza", o artigo 71 dispõe que "A natureza ou Pachamama, onde se reproduz e realiza a vida, tem direito a que se respeite integralmente sua existência, manutenção e regeneração de seus ciclos vitais estrutura, funções e processos evolutivos."

Em entrevista à rede britânica BBC, à época da promulgação do texto, o presidente da Assembleia Constituinte Equatoriana Alfredo Acosta disse que "na realidade, se queria fazer justiça com a natureza e reconhecer que se no século 20 a justiça social foi o eixo das lutas, a justiça ambiental será no século 21".

Sobre a maneira como estes direitos podem ser exercidos na prática, Acosta afirmou na mesma entrevista que a Constituição "outorga a toda pessoa, comunidade, a possibilidade de exigir da autoridade pública os direitos da natureza".

O texto constitucional afirma que "para aplicar estes direitos, o Estado incentivará as pessoas naturais e jurídicas, e os coletivos que protejam a natureza e promoverá respeito a todos os elementos que formam um ecossistema".

Em seu artigo 396, por fim, a lei equatoriana impõe responsabilidade objetiva (independente da prova de culpa) por danos causados ao ambiente: "A responsabilidade por danos ambientais é objetiva. Todo dano ao ambiente, ademais das sanções correspondentes, implicará também a obrigação de restaurar integralmente os ecossistemas e indenizar as pessoas e comunidades afetadas".

Para a redação dos artigos que tratam dos direitos da natureza, o poder legislativo equatoriano contratou a assessoria da ONG americana Community Environmental Legal Defense Fund (CELDF).

Bolívia

Na Constituição Boliviana (2009) o reconhecimento da personalidade jurídica da natureza como ente dotado de direitos e deveres é mais tácita, menos direta, mas ainda assim inegável.

Em seu preâmbulo, a lei maior do país vizinho diz que "cumprindo com o mandato de nossos povos, com a fortaleza de nossa Pachamama e graças a Deus, refundamos a Bolívia".

O texto segue lembrando que "em tempos imemoriais se erigiram montanhas, se deslocaram rios, se formaram lagos. Nossa Amazônia, nosso Chaco, nosso Altiplano e nossas planícies e vales se cobriram de folhagens e flores. Nós povoamos essa sagrada Mãe Terra com rostos diferentes, e compreendemos desde então a pluralidade vigente de todas as coisas e nossa diversidade com seres e culturas. Assim conformamos nossos povos e jamais compreendemos o racismo desde que sofremos os funestos tempos de colônia".

Já o artigo 33 do texto prescreve que "as pessoas têm direitos a um meio ambiente saudável, protegido e equilibrado. O exercício deste direito deve permitir aos indivíduos e à coletividade das presentes e futuras gerações, além de outros seres vivos, desenvolverem-se de maneira normal e permanente".

O artigo seguinte complementa o anterior e dispõe que "qualquer pessoa em nome individual ou representando uma coletividade está facultada a exercer as ações de defesa do meio ambiente sem prejuízo das obrigações das instituições públicas em atuarem de ofício diante de atentados contra o meio ambiente".

A Constituição Boliviana também trata especificamente do uso sustentável do meio ambiente e das águas em dois artigos ao longo do corpo de seu texto.

Para o professor Zaffaroni, na prática, o texto habilita qualquer pessoa à ações judicias de proteção, sem que se trate de alguém diretamente afetado, o que é o requisito final para o reconhecimento da personalidade da própria natureza".

Deste modo, segundo ele, o constitucionalismo andino deu "um grande salto" do ambientalismo até um verdadeiro "ecologismo" constitucional.

"Não se trata de ambientalismo destinado a proteger centros de caça ou recursos alimentares escassos para os seres humanos, nem tampouco de proteger as espécies por mero sentimento de piedade, por serem menos desenvolvidas do que os humanos, mas de reconhecer obrigações éticas em relação a eles."

Eugenio Raul Zaffaroni, em La Pachamama y el Humano (2012, Ediciones Colihue)

  • Vista do Museo de La Pachamama, em Amaicha del Valle, norte da Argentina

As duas mais recentes Constituições promulgadas na América Latina – Equador (2008) e Bolívia (2009) – trazem expressas em seus tex­tos um ino­vador reconhecimento da na­tu­reza como sujeito de direitos, assim entendido como aquele a quem a lei, em sentido amplo, atribui direitos e obrigações.

Há em ambas as legislações um surpreendente deslocamento da visão do homem como o centro do universo. O novo paradigma jurídico dos textos legislativos tem como ideia central a garantia de que a natureza, ou Pachamama ("mãe-terra", na língua ancestral dos povos originais da região), não pode mais ser considerada como objeto de livre disposição do homem, e sim em nível de igualdade com este, por fazerem parte do mesmo todo.

Em um pequeno e precioso livro chamado Pachamama y el Humano (2012, Ediciones Colihue), o jurista argentino Eugênio Raul Zaffaroni analisa com profundidade a questão da garantia de direitos à natureza dentro deste novo momento constitucional sul-americano.

Ministro da Suprema Corte Argentina e um dos mais conceituados especialistas em direito penal do continente, Zaffaroni dedicou-se, no final da década passada, a estudar a relação dos conceitos de ecologia profunda e biocentrismo com o direito constitucional, em um trabalho que lhe valeu o título de doutor honoris causa na Universidade de Quito.

Uma versão mais digerível da pesquisa foi lançada em forma de livro, que deveria, aliás, ganhar uma tradução nacional.

A princípio, o autor exe­cuta um rastreamento do modo em que, desde a An­tiguidade, passando pela Idade Média e o cientificismo cartesiano, se tem reconhecido ou ignorado a natureza e os animais no pensamento filosófico e jurídico.

Após esta análise, Zaf­faroni aborda o tema por seu enfoque fundamental: a busca do equilíbrio entre direitos do homem e direitos da natureza.

A discussão principal investiga qual posição os humanos querem assumir em relação à natureza: "Somos mais um dos convidados a fazer parte da natureza ou ela foi criada para ser nosso habitat, e dela podemos nos servir?", indaga.

Para Zaffaroni, a resposta está na invocação de Pachamama feita pelas duas cartas magnas andinas, que significa "dar o estatuto de pessoa coletiva, uma extensão da subjetividade constitucional, à natureza".

Segundo o jurista, a discussão abre uma nova fase do constitucionalismo global. Até agora encarada no mesmo nível que as coisas tangíveis do direito civil, a mudança do paradigma permite trabalhar em uma nova linha de "respeito à dignidade da natureza".

"Não se trata de ambientalismo destinado a proteger centros de caça ou recursos alimentares escassos para os seres humanos, nem tampouco de proteger as espécies por mero sentimento de piedade, por serem menos desenvolvidas que os humanos, mas de reconhecer obrigações éticas em relação a eles, resultantes do fato de participarem juntos em um todo vivo de cuja saúde dependem todos os seres humanos e não-humanos", explica a obra de Zaffaroni, em tradução livre feita pela reportagem.

Críticas

Dentro do meio jurídico-acadêmico do nosso complexo continente, as inovações conceituais dos legisladores andinos e sua construção política e filosófica têm sido recebidas e estudadas sob diferentes pontos de vista e diversos graus de entusiasmo.

Há quem veja a inovação jurídica com desconfiança, fundada no temor de que sua incorporação prejudique as conquistas modernas em relação aos direitos do homem.

Por outro lado, muitas vozes relevantes do direito e da filosofia latino-americanos conseguem perceber as duas legislações – catalogadas academicamente com o rótulo de neoconstitucionalismo andino – como uma resposta inescapável ao problema da preservação do meio ambiente, tema apontado por muitos analistas como o principal da agenda política do século 21.

Neste mesmo sentido, não raro as inovações das constituições andinas são tomadas como parte de um processo de descolonização da região, que inclui, no discurso e na prática, a adoção de um principio jurídico diverso ao constitucionalismo antropocentrista e politicamente liberal – como o que, a grosso modo, pode definir diplomas legais, como o brasileiro, vigente desde 1988 – que, em regra, privilegia o indivíduo humano como único sujeito de direitos e obrigações.

Para Zaffaroni, as críticas ao novo paradigma andino decorrem, muitas vezes, de desonestidade intelectual. "É muito fácil perverter o discurso ecológico, particularmente profundo, basta caricaturalizá-lo, convertendo-o em um discurso contrário às declarações de direitos e opor o geocentrismo ou qualquer outra tentativa de reconhecer a natureza como sujeito de direitos em um discurso anti-humanista que, por remover o humano do lugar de titular do domínio absoluto da natureza, o degrade em um micróbio eliminável e se opõe à sua conservação."

Estender a personalidade jurídica à natureza não se trataria de um retorno do homem ao "estado de natureza", mas sim de o homem reconhecer-se como parte indissociável dela, sem a qual não pode sobreviver. "Preservar a terra é um direito humano à sua existência. Por ser dotado de razão, o homem deve tratar agora não mais de modificar deliberadamente a natureza e sim de conservá-la."

Em um artigo chamado "Constitucionalismo Ecoló­gico na América Latina", o teólogo e escritor Leonardo Boff endossa esta ideia e aponta que a consolidação deste conceito pode ajudar a formar uma igualdade real, e não apenas formal, dos direitos do homem e da terra. A partir desta mudança, devem ser reorganizadas as relações sociais, algo que pode interferir na criação de uma nova ordem política no continente.

"Os novos constitucionalistas latino-americanos ligam duas correntes: a mais ancestral, dos povos originários, para os quais Pachamama é titular de direitos porque é viva, nos dá tudo o que precisamos e, finalmente, pela razão de sermos parte dela e de pertencermos a ela, bem como os animais, as florestas, as águas, as montanhas e as paisagens", afirma Boff.

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