O livro do ano
Leite Derramado (Companhia das Letras, 200 págs., R$ 39) é o quarto romance de Chico Buarque.
História
A narrativa é em primeira pessoa e se desenrola pelas lembranças e delírios de Eulálio Montenegro dAssumpção, um senhor de 100 anos que passa mal numa cama de hospital, tendo de receber morfina para aguentar a dor. A droga acaba o induzindo a delírios e, a certa altura da narrativa, o leitor é envolvido pelos pensamentos confusos do personagem.
Estilo
A fluência de Leite Derramado é tão impressionante quando a relação que o texto (e, por consequência, o autor) tem com a língua portuguesa. Só para lembrar, Chico, de 66 anos, é filho do sociólogo Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982). Do título do romance a certas expressões peculiares como quando diz que determinado evento ocorreu em "mil novecentos e lá vai fumaça" , Eulálio é uma figura extremamente brasileira. A história dele se confunde com a do próprio país.
A frase
Numa das frases mais belas de Leite Derramado, o velho narrador diz: "Mas se com a idade a gente dá para repetir certas histórias, não é por demência senil, é porque certas histórias não param de acontecer em nós até o fim da vida".
Os eventos ocorridos na Casa Fasano na noite da última segunda-feira deram a Leite Derramado o status de livro do ano. Depois de conquistar o prêmio Jabuti de melhor obra de ficção de 2010, em cerimônia realizada na semana passada, o romance de Chico Buarque recebeu desta feita os R$ 100 mil dados ao primeiro lugar no Prêmio Portugal Telecom de Literatura.
Outra Vida (Alfaguara), de Rodrigo Lacerda, ficou em segundo lugar (R$ 35 mil) e Lar (Companhia das Letras), de Armando Freitas Filho, terminou em terceiro (R$ 15 mil).
Publicado pela Companhia das Letras, Leite Derramado é o longo delírio de um homem centenário sob o efeito de morfina, no que parecem ser os seus momentos derradeiros, deitado numa cama de hospital.
Eulálio, o senhor em questão, passa em revista cinco gerações de sua família ele chega a citar o próprio tetravô. Mas, a certa altura, não se sabe mais o que é lembrança e o que é criação da mente entorpecida do personagem. "A memória é deveras um pandemônio, mas está tudo lá dentro, depois de fuçar um pouco o dono é capaz de encontrar todas as coisas", diz Eulálio.
Chico Buarque estava usando uma camisa listrada preta e branca, um paletó cinza claro, calças e sapatos pretos. Ao se sentar para a entrevista depois de anunciado o prêmio, chamavam atenção as meias claras. Ele chegou depois que todo o público já estava sentado e com a cerimônia prestes a começar.
Assim que botou os pés no salão, causou comoção própria a uma celebridade. Suspiros e sussurros vinham de todos os lados da plateia. A presença do autor era uma pista forte de que levaria alguma coisa e levou de fato. Quando desceu do palco com o troféu nas mãos, por pouco jornalistas, fotógrafos e cinegrafistas não o soterraram. O tipo de alvoroço incomum no mundo literário.
Tendo encarado algumas perguntas e as fotos de praxe, Chico Buarque juntou suas coisas e se foi. Difícil imaginar o que teria acontecido que continuasse no ambiente. Era muito provável que não lhe dessem respiro.
O mestre de cerimônias da noite foi o apresentador Jô Soares, responsável por uma sucessão de momentos embaraçosos. A Portugal Telecom (PT), empresa de telefonia que banca o prêmio um dos dois mais bem remunerados do país, ao lado do São Paulo de Literatura , levou para a festa de entrega uma réplica do programa de entrevistas que Jô apresenta na Rede Globo.
Além do humorista, estavam lá a sua banda e uma estrutura semelhante, com sofá para convidados, mesa e cadeira para o entrevistador.
Do começo ao fim de sua participação, Jô se recusou a assumir a posição de coadjuvante e não conseguiu frear o impulso de se impor sobre os participantes, o que deixou muitos convidados indignados. Alardeou que também era escritor, fez um comentário um tanto ressentido sobre o crítico Wilson Martins (1921-2010), que o teria chamado de "amador" (e a Chico Buarque também), destacou o fato de ter conhecido José Saramago anos antes da viúva, Pilar Del Rio (ela então sugeriu que ele deveria ter casado com o Nobel português), e arrematou a noite de constrangimentos no que foi encarado como um desrespeito aos vencedores: anunciou mal e mal os nomes do terceiro e segundo lugares muitos não chegaram a ouvir o que ele dizia , e mandou e desmandou nos executivos e em Pilar, que foram ao palco para entregar os troféus.
"Eu não me considero um amador, mas as pessoas me consideram", afirmou Chico Buarque, que recebeu o prêmio das mãos de Pilar. O carioca disse entender a dificuldade que o público tem de dissociar o escritor da pessoa pública, ou o autor de Leite Derramado do compositor de "A Banda". "Mas já faz 20 anos desde o primeiro livro", disse, em referência a Estorvo. Depois deste, vieram os romances Benjamim e Budapeste. Dos quatro, três levaram prêmios nacionais diversos.
"Sempre que escrevo um livro, não quero ouvir música. Eu me dedico totalmente à escrita. Quando termino, volto para a música sentindo saudades dela", disse Chico. "Paro de escrever e fico com a mão destreinada. Quando começo um livro, demoro a pegar a coisa de novo."
Tirando Jô Soares, a noite teve bons momentos como o da homenagem a José Saramago (1922-2010), quando exibiram um fragmento do documentário José e Pilar, em cartaz nos cinemas. Caim, o último romance do autor, estava entre os dez finalistas do prêmio, mas foi retirado da competição por Pilar e o editor Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras, respeitando a postura de Saramago de não participar de qualquer outra disputa literária depois de ter conquistado o Nobel.
O jornalista viajou a convite da Portugal Telecom.
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