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Literatura

Os incompreendidos

Em Paris, por volta de 1955, François Truffaut revirava o acervo da livraria Delamain na praça do Palais-Royal quando deu com o romance de estréia de um senhor septuagenário – e essas duas informações bastaram para que desejasse lê-lo imediatamente. O livro se chamava Jules e Jim e falava da relação incomum entre os dois homens do título e uma mulher única, Catherine. Truffaut (1932 – 1984) começava a se encantar pela obra de Henri-Pierre Roché (1879 – 1959).

Jules e Jim: o Roteiro, o Romance (Tradução de André Telles. Jorge Zahar Editor, 288 págs., R$ 45) reúne em um mesmo volume o livro de Roché e a adaptação de Truffaut – feita com a colaboração de Jean Gruault. A decupagem do roteiro é ilustrada com fotogramas e a edição inclui ainda um perfil breve do escritor tardio, algumas opiniões da crítica francesa à época (todas mais ou menos elogiosas), uma entrevista com o diretor, sua filmografia e um pequeno glossário de termos técnicos.

Passar por todas as informações compiladas no livro e (re)ver o filme não é só uma aula, mas um curso de cinema. Quando leu o romance de Roché, Truffaut fazia planos de se tornar diretor e seguia trabalhando como crítico para várias publicações, entre elas a revista Cahiers du Cinéma, do seu padrinho André Bazin. O debute como cineasta desencantou com a exibição de Os Incompreendidos no Festival de Cannes de 1959.

Logo Truffaut, ao lado de Jean-Luc Godard, seria nomeado o líder da Nouvelle Vague, movimento célebre por renovar o cinema francês e cujo impacto foi sentido a milhares de quilômetros dali. Inclusive no Brasil, com o Cinema Novo.

Três anos depois da estréia em Cannes, ainda abalado com a má recepção dada ao seu segundo longa-metragem, Atirem no Pianista, e sem poder contar com o apoio de Roché, morto em 59, Truffaut enfim lançou Jules e Jim. Em "brasileiro", a produção se chamou Uma Mulher para Dois. O título bem poderia ser Catherine e faria jus ao encanto que Jeanne Moreau empresta à personagem dividida entre o francês Jim (Henri Serre) e o alemão Jules (Oskar Werner), sem mencionar o flerte breve com o cantor Albert (Cyrus Bassiak).

Truffaut acreditava que a força do livro era o fato de ser autobiográfico. Em seus diários, que cobriram quase 60 anos, Roché revela detalhes de uma situação semelhante vivida com o casal Franz e Helen Hessel. No caso, Roché seria o galanteador Jim, a contrapartida ao inseguro Jules.

O filme tem uma atmosfera literária. A narração em off costura seqüências que parecem pequenos curtas-metragens com personagens e certos temas em comum, parte deles desenvolvido em cima da idéia do triângulo amoroso e de suas conseqüências. Filmado com 2h30 de duração, foi reduzido por Truffaut a 1h50. Talvez isso tenha dado velocidade à narrativa.

Estruturado em 34 capítulos curtíssimos, o livro transcorre em um ritmo alucinante. Os personagens se envolvem, se afastam, lutam a Primeira Guerra Mundial, voltam a se relacionar, hesitam e tomam atitudes extremadas. A sucessão rápida de eventos aparece de maneira simbólica na canção "Le Tourbillon", composta por Bassiak (o Albert da história) e cantada por Jeanne Moreau: "Conhecemo-nos, reconhecemo-nos/ Perdemo-nos de vista, perdemo-nos de vista/ Reencontramo-nos, aquecemo-nos,/ Depois nos separamo-nos/ Cada um partiu para o seu lado/ No turbilhão da vida."

A economia de palavras é inversamente proporcional à capacidade do autor transmitir pensamentos e sensações. Qualidade que mais atraiu Truffaut. "Meu escritor preferido era (Jean) Cocteau, pela rapidez das frases, a aparente secura e a precisão de suas imagens. E eis que eu descobria, com Henri-Pierre Roché, um escritor que me parecia mais forte que Cocteau, pois alcançava o mesmo tipo de prosa poética com um vocabulário mais restrito, formando frases ultra-curtas com palavras da vida cotidiana. Através do estilo de Roché, a emoção surge do buraco, do vazio, de todas as palavras recusadas, em suma, da própria elipse", afirmou em texto reproduzido no livro François Truffaut – Uma Biografia, publicado pela Record.

Por viverem uma relação controversa até a medula, Catherine, Jim e Jules foram logo taxados de imorais pela censura da época. Porém, o que fizeram Roché e Truffaut foi contar uma história de amor. Sem limites, é fato. Mas, ainda assim, uma história de amor.

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