Ensaio
Os Rebeldes: Geração Beat e Anarquismo Místico
Claudio Willer. L&PM Pocket, 200 págs. R$ 34,90.
Legado
Jovens se identificam com a estética beatnik
"Aturar algumas inconveniências como cobras e poeira por amor à liberdade absoluta", dizia Kerouac. O autor de E os hipopótamos foram cozidos em seus tanques (Companhia das Letras, 2009), sua parceria com Burroughs, é um dos mais lidos escritores desta prole de flâneurs que amavam a natureza, consumiam muitos psicotrópicos e praticavam alguns crimes. "A Geração Beat vai ganhando cada vez mais leitores. As edições de bolso são sempre muito bem-sucedidas e os jovens se identificam com a estética", completa Willer.
O poeta Gary Snyder, budista praticante, definia bem esta alma anárquica e sem fronteiras: "A luta de classes significa pouco àqueles que, em suas mentes e vidas, abandonaram todas as classes".
Em 1964, Claudio Willer ecoava as vibrações da Geração Beat com seu Anotações para um Apocalipse. Ao lado de Roberto Piva, Antonio Fernando de Franceschi e Roberto Bicelli, ele integrou uma espécie de geração brasileira que encontrou nos beatniks uma força-motor para reinventar a linguagem e quebrar paradigmas, um dos motes do movimento.
Surgida aos pés do fim da Segunda Guerra Mundial e efervescida em meados dos anos 1950, a Geração Beat, representada, sobretudo, pela figura ímpar de Jack Kerouac (1922-1969), mentor e autor do divisor conceitual On The Road, também teve em Allen Ginsberg (1926-1997), Gregory Corso (1930-2001), William Burroughs (1941-1997) e Lawrence Ferlinghetti expoentes de um período confuso, arbitrário e recheado de confusões, uma gente que bateu o pé na porta do american way of life e botou os Estados Unidos de cabeça pra baixo.
Cinquenta anos depois, é este mesmo universo, sem muitas regras e de intenções estéticas difíceis de definir, que Claudio Willer novamente abraça em Os Rebeldes: Geração Beat e Anarquismo Místico. E o resultado é ainda mais interessante do que o introdutório Geração Beat, escrito por ele em 2009.
Contracultura
O interesse de Willer, poeta, ensaísta e tradutor, pela temática ultrapassa a referência particular. Em 1984, por exemplo, ele traduziu Uivo - Kaddish e Outros Poemas, de Allen Ginsberg, que teve sucessivas reedições. Seus vínculos com a criação literária mais rebelde e transgressiva levou-o a traduzir os surrealistas Lautrémont e Antonin Artaud. Doutor em Letras pela USP, como professor convidado realizou curso de extensão cultural sobre a Geração Beat.
"Aprecio e me identifico, sob diversos ângulos, com a rebelião intelectual deles. Gosto da prosódia de cada um, a diversidade de estilos e a forma como lidaram com a língua falada, casando a ambivalência do erudito ao informal das ruas", alega. Em Os Rebeldes, ele associa os beats de "Tudo me pertence porque sou pobre" a declaração-lema de Keroauc ao simbolismo religioso, presente no elogio à despossessão e à simplicidade.
Entretanto, o gosto geral do grupo por budistas e místicos não reflete, necessariamente, uma associação direta às bandeiras religiosas. Adepto do Espírito Livre, Ginsberg chegou a afirmar que via o poeta como um sacerdote. "O vagabundo é tão santo quanto o serafim! O louco é tão santo quanto você minha alma é santa".
De fato, o coração iconoclasta da trupe tornava-os, além de bons frasistas, excepcionais polemistas. "Jesus era um estranho vagabundo que caminhava sobre as águas", dizia Keroauc ao justificar, de modo um tanto peculiar, a ideia da harmonia cósmica cristã. Acerca disto, Willer se pergunta: "Poderia a Geração Beat ser considerada um movimento religioso? A rigor não, por causa da heterodoxia e diversidade doutrinária de seus integrantes. [...] A Geração Beat foi, dentre os grandes movimentos literários do século XX, aquele cujos integrantes mais se relacionaram com modalidades de experiências religiosa e mística. E também os que mais politizaram tais experiências".
Uma geração de vagabundos iluminados
A Geração Beat foi inigualável nos quesitos marginalidade e delinquência pura. Havia desde um poeta como Neal Cassady, filho de morador de rua, a um burguês elitista como Burroughs, que chegou a trabalhar como exterminador de insetos e foi, no Texas, plantador de maconha. Em Nova York, ele roubava bêbados que dormiam na rua. Gregory Corso aprendeu literatura na cadeia. Kerouac foi marinheiro, lavador de pratos e colhedor de algodão.
Cassady afirmou em autobiografia ter roubado 500 carros antes de completar 17 anos. Também destruiu a coleção de jazz de Ginsberg, acusando-o de apego aos bens materiais. Bill Garver, amigo pessoal de Burroughs, era traficante e especializado em furtar casacos e mantos em restaurantes. Quando preso, dava aulas sobre Mallarmé e história da Antiguidade para os demais detentos.
Confusões
O afeto demasiado de Kerouac ao álcool levou-o a se envolver em brigas e apanhar diversas vezes em bares e casas de menor fama. Ginsberg foi deportado de alguns países por seu curioso hábito de ficar nu em público. Ao plano místico, eram comuns as experiências com LSD e as tentativas de reviver o que ele chamava de "iluminação auditiva de Blake", referindo-se ao poeta-profeta William Blake. Ginsberg apreciava também orgias com os estudantes ao fim de suas oficinas literárias.