Maria Bethânia é quase tão impactante falando quanto cantando. Assim como seu irmão mais velho, o compositor Caetano Veloso, a artista tem gosto pela palavra. E faz questão de utilizá-la generosamente. Não para falar de sua vida pessoal é notório o apreço que nutre pela privacidade , mas, quando o assunto é a arte do canto, música, literatura e palco, Bethânia solta o verbo. E encanta, quase hipnotizando seus interlocutores. Talvez porque, como poucos eleitos, consiga aliar ponderação, gravidade e um refinado senso de humor, capaz de dar leveza à sua dicção contundente, de palavras muitíssimo bem pronunciadas, em um português bonito de ouvir, cultivado em Santo Amaro da Purificação, cidade onde nasceu, no Recôncavo Baiano.
Nem sempre, contudo, Bethânia faz absoluta questão de retirar de pauta sua vida pessoal. Em entrevista concedida a este jornalista, em 2005, ela fez uso de sua conhecida habilidade verbal para resumir em poucas palavras o que considera sua missão como artista: "As minhas escolhas têm a ver com intuição. Deus foi sábio ao não me dar filhos, um lar. Nasci para fazer o que faço. Minha vida é a minha arte, minha procura por novas formas de manifestá-la. Sou inquieta, estou sempre nessa busca."
Aos 60 anos, a filha de dona Canô tem pouco ainda a provar. É ícone da cultura brasileira, da qual faz parte há mais de quatro décadas, desde que a saudosa Nara Leão a convidou para substitui-la, em 1965, no já lendário show Opinião, ao lado de João do Vale e Zé Kéti. Cantando "Carcará", Bethânia arrebatou o público e começou a trilhar uma jornada vitoriosa, coroada em 2006 com três acontecimentos de peso em sua carreira. Primeiro foi a grande vencedora do prêmio Tim, sendo reconhecida nas categorias de melhor cantora, disco (Que Falta Você Me Faz, com canções de Vinicius de Moraes) e DVD (Tempo, Tempo, Tempo, Tempo). Depois, ficou encarregada de fazer o show-homenagem ao escritor Jorge Amado, na abertura da Festa Literária de Parati deste ano, para um platéia de escritores ilustres dos cinco cantos do planeta. Agora, Bethânia presenteia uma platéia bem maior.
Na verdade, não se trata, exatamente, de uma iniciativa da cantora baiana. Coube ao jornalista (e fã) Rodrigo Faour inventar o que ele mesmo chama de projeto maluco: relançar, de forma avulsa, nada menos do que 34 discos (leia quadro ao lado) da obra da cantora. Para isso, foi necessário unir os esforços de três gravadoras multinacionais: a Universal (22 títulos), a EMI (5) e a Sony/BMG (6 álbuns de carreira mais uma coletânea de seus primeiros compactos simples).
Segundo Faour, o trabalho foi exaustivo, mas valeu a pena. Foram preservadas todas as informações das artes gráficas dos álbuns originais em vinil e, no caso dos que já saíram originalmente em CD, também foram mantidos os projetos de origem. Não faltam, contudo, novidades: além da remasterização de boa parte das gravações, houve uma padronização dos fundos de estojo sempre com um pequeno texto para informar o consumidor nas lojas do que se trata e um artigo, este bem maior, de encarte, explicando o momento que vivia Bethânia durante o processo de produção de cada um dos álbuns. O interessante desses textos é que, frutos de extensa pesquisa e de conversas com a artista, acabam trazendo à luz informações de bastidores pouco conhecidas do grande público.
Dentre os títulos que chegam ao mercado fonográfico depois de anos de ausência, alguns merecem especial atenção. Maria Bethânia Canta Noel Rosa e Outras Raridades, por exemplo, reúne compactos (simples, duplos e triplos), lançados na década de 60, com canções do sambista da Vila Isabel. Dos anos 80, vêm dois dos álbuns mais elogiados (e menos ouvidos) de Bethânia: os belíssimos Ciclo (1983) e A Beira e o Mar (1984). Depois do estrondo comercial de Álibi (1978), que vendeu mais de um milhão de cópias, e Mel (1979), a cantora optou nesses trabalhos por desafiar as espectativas e fugir de canções de assimilação mais fácil, chegando ao extremo de, em um momento no qual imperavam arranjos mais eletrônicos, partir para o acústico, algo que só se tornaria tendência uma década mais mais tarde. Sábia Bethânia.
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