Personagem
Ousado, romance subverte a imagem do Judas bíblico
Na trama de Judas, Amós Oz desenvolve uma tese polêmica, discutida pelos personagens. O livro subverte a imagem do Judas bíblico: em vez do traidor histórico que vendeu Jesus, ele seria o mais fiel de todos os discípulos do profeta.
A ideia pode enfurecer cristãos e judeus, mas o objetivo de Oz é outro.
Ao longo dos séculos, a figura de Judas se tornou, nas palavras do autor, uma espécie de "Chernobyl do antissemitismo", sempre usada para atacar os judeus. Sua reabilitação é uma maneira de desacreditar os antissemitas, que veem em todo judeu um traidor.
"Nesse romance, Judas é o primeiro cristão do mundo, e talvez o último", explica.
"Eu sei que a ideia contém uma provocação, mas o livro também provoca muitos leitores israelenses, por apresentar o personagem de Shaltiel Abravanel, que não acredita na criação de um estado de Israel."
Coragem
O escritor, que costuma ser um crítico feroz do atual governo israelense, do premiê Benjamin Netanyahu, diz que são necessários "líderes israelenses, palestinos e árabes com coragem para tomar decisões vistas como traição pelo seu próprio povo".
"Se estes líderes vão aparecer, não tenho como dizer. É difícil ser profeta na terra do profeta. Por aqui há muita competição no negócio das profecias", diz o escritor.
Serviço
Livro
Judas, de Amós Oz. Tradução de Paulo Geiger. Companhia das Letras, 368 págs., R$ 44,90.
Ainda menino, Amós Oz descobriu o que é ser mal visto por seus pares. No longínquo ano de 1946, com Israel sob domínio britânico, ele ousou fazer amizade com um sargento inglês. A vizinhança em que vivia se enfureceu a maioria apoiava grupos rebeldes sionistas, que buscavam banir o Mandato Britânico da Palestina. Para eles, qualquer aproximação com o inimigo constituía um imperdoável ato de traição.
Quase seis décadas se passaram. Aos 75 anos, Oz é hoje o mais famoso escritor de seu país, candidato recorrente ao Nobel de Literatura. E a pecha de vira-casaca continua o acompanhando, principalmente quando o assunto é o conflito israelo-palestino.
Por defender soluções menos belicistas para o embate, como a criação de dois estados (Israel e Palestina), ele é visto por muitos de seus conterrâneos como um inconfidente da causa israelense.
Não por acaso, o tema da traição está no centro de seu novo romance, Judas (Companhia das Letras). Lançado simultaneamente em Israel e no Brasil no início do mês, o livro traz uma ideia diferente da palavra: a de que o traidor pode ser o mais leal e devotado dos indivíduos. Aquele que, em meio ao medo de mudança, é injustiçado por tomar decisões impopulares, mas necessárias.
"Não me interessa o traidor trivial, que vende informações por dinheiro", diz o autor, em entrevista por telefone, de Israel. "Isso é para romances de espionagem, para o James Bond. O que me entusiasma é um tipo específico de traidor, incompreendido por estar à frente de seu tempo ou por propor grandes mudanças. E que acaba visto como traidor por pessoas que não aceitam as mudanças, mas as temem."
O protagonista do romance é Shmuel Asch, um estudante que, após ser deixado pela namorada no inverno israelense de 1959, decide abandonar sua pesquisa na universidade um estudo sobre a evolução da figura de Jesus sob a ótica dos judeus. Em busca de um teto e de um emprego, ele aceita o convite para cuidar de um velho inválido em uma casa isolada de Jerusalém, onde também mora a misteriosa Atalia Abravanel, por quem Asch passa a se interessar.
Em meio a discussões filosóficas e revelações históricas (o pai de Atalia, Shaltiel Abravanel, era um militante que foi expulso do movimento sionista por ser contra a transformação de Israel em um país independente) a dupla o inicia nas cicatrizes do passado, repletas de falsos traidores. Muitos deles poderiam ter mudado a violência na região, se tivessem sido mais bem compreendidos.