Ao analisar um dos livros de Enrique Vila-Matas, Roberto Bolaño afirmou que o romance do século XXI será sempre híbrido. E era exatamente isso que ele próprio fazia, uma narrativa literária que se apropriava de formatos do entretenimento.
Um dos narradores portugueses mais legíveis da atualidade, Francisco José Viegas está identificado a esta linhagem do romance policial, tendo criado um personagem que agora completa 25 anos. Para marcar este aniversário, o autor reuniu cinco contos em A poeira que cai sobre a terra (Porto Editora, 2016). O inspetor da polícia Jaime Ramos conta com uma equipe de auxiliares e não busca fazer justiça, interessado antes de tudo nos mortos. Profissional da memória, liga-se afetivamente ao destino dos que logo cairão em esquecimento. Mais, portanto, do que uma sequência de violências e crimes, temos em seus textos a reconstituição de trajetórias misteriosamente interrompidas. “Arrastar-se entre os mortos, fora isto um pouco de sua vida” (p.19), ele diz, meio desolado. Mais à frente, retoma esta sina profissional: “Funcionário da morte, é isso que sou, um biógrafo com défice de reconhecimento” (p.59). Desta circunstância nasce um sentimento de marginalidade social do inspetor e sua equipe, que não se veem como essenciais para o funcionamento do mundo. São, na verdade, tão marginais quanto a maioria dos envolvidos em assassinatos, tornando-se alvo de rejeição pela natureza de seu trabalho. Em certa altura, o auxiliar Isaltino reclama: “Ninguém dá importância a gente como nós. Gente que se importa com os que morrem” (p.108).
Esta preocupação com os mortos dota de humanismo as histórias de Jaime Ramos, personagem sintomaticamente avesso às manias saudáveis – já que convive de perto com a morte. Ele está sempre fumando, apesar de seus problemas de saúde, e não se intimida diante de pratos calóricos ou de bebidas, talvez como homenagem aos cadáveres que entram a todo instante em sua vida. Resta ao velho inspetor, conectado a tantos finais inglórios, desfrutar dos prazeres breves e perigosos.
Neste sentido, perpassa em cada página um afeto pelo Porto. Embora mudem os mortos, alguns sendo buscados mesmo fora do país, o grande personagem de Francisco José Viegas é a civilização do Douro. Percorremos com ele endereços com cheiro particulares, cenários urbanos carregados de poesia, comidas e bebidas com gosto hereditário, o que nos remete a uma paisagem vivida em profundidade.
Nesta sua busca de dados sobre mortes enigmáticas, quando mais os intui, Jaime Ramos elucida os crimes mantendo alguma obscuridade, imprimindo aos relatos uma estrutura leve e veloz – meio de ruína narrativa. Também não há um exibicionismo literário por parte do inspetor – que lê escondido alguns romances. Tudo transcorre na cidade dos homens, o que faz de Francisco José Viegas um caso raro de estilo da oralidade em Portugal.
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