O escritor Charles Kiefer tem mais de 30 livros publicados, dezenas de prêmios três Jabutis entre eles e é professor de escrita criativa há quase duas décadas. "Talvez não seja possível ensinar a escrever; mas é plenamente possível ensinar a aprender a escrever", diz Kiefer em um dos textos de Para Ser Escritor, uma antologia de textos a respeito do ofício de escrever, ora publicado pela editora Leya.
O gaúcho de Três de Maio, nascido em 1958, usa a experiência nas oficinas literárias para falar sobre vários aspectos da profissão. Discute ideias como a existência breve do escritor, possível apenas no instante em que "a mão corre para acompanhar-lhe o raciocínio", e questões práticas como a opção infeliz de lançar um livro num bar.
Em meio à correria do fim de ano letivo, Kiefer aceitou responder perguntas por e-mail, oferecendo um ponto de vista genial sobre questões literárias e existenciais.
A literatura dá conta da vida?
Não, a literatura não "dá conta da vida", porque ela é uma outra forma de vida, uma das derivações da vida. Não gosto dessas oposições, tipo vida versus literatura. Somos muito maniqueístas. Mesmo que a vida não tenha sentido, viver e escrever fazem todo o sentido. Lacan dizia que o sentido era um vazio. Então, parece que tentamos preencher esse vazio com significações. Se a literatura ajuda a preencher o vazio? Ajuda, mas não enche. É que o vazio é gigantesco, é astronômico, e só pode ser preenchido com a consciência serena de que jamais seremos capazes de preenchê-lo.
Qual é o papel da literatura no mundo atual? Qual é a "utilidade" da literatura?
Como toda a arte, não tem função. Mas esse "não ter função" é uma trincheira ideológica contra o utilitarismo. Que bom que haja algo no planeta que não tenha utilidade prática. Essa "dialética negativa", como dizia Theodor Adorno, abre possibilidades infinitas. As mais evidentes são o prazer, o conhecimento e o autoconhecimento. Na prática diária de professor, comprovo que a literatura, e toda a arte, tem a capacidade de devolver o humano ao homem, desalienando-o.
Parece que as editoras consideram o conto um gênero impopular. Elas preferem romances que, apesar de mais extensos, são mais "vendáveis"? O que pensa dessas ideias?
Sim, concordo, até por experiência própria. Trabalhei 12 anos em editora e sei que romance vende mais que poesia e conto. A questão é: poesia e conto são gêneros literários que requerem um leitor sofisticado, capaz de decodificar alegorias, símbolos e imagens literárias menos frequentes na crônica e no romance. Ou seja: o romance é um gênero mais simples, menos complexo, e por isso mais "palatável" para as massas. Não existe "poesia de entretenimento" e nem "conto de entretenimento", mas "romance de entretenimento", sim.
Num ensaio emocionante, "Literatura é solidão", você deixa transparecer um certo pessimismo com o ato de escrever. Seria esse texto uma prova de que você nem sempre confia na literatura? Essa desconfiança tem um pouco a ver com a realidade brasileira?
Não, nada a ver com a realidade brasileira. É apenas a constatação de que literatura só tem importância para quem escreve. Se lincares com o primeiro ensaio, onde faço a distinção entre escritor, autor e profissional de literatura, descobrirás que literatura só tem importância mesmo para o escritor, esse ser frágil e fátuo que se desmancha no ar assim que a gente parou de escrever. Ou seja: literatura é, a rigor, um ato onanista, que se esgota em seu próprio devir.
Qual é o lugar que a literatura ocupa na sua vida?
A literatura ocupa completamente minha vida. Dou aulas de segunda a sábado, em todos os turnos. E, nos finais de semana, feriados e férias escrevo meus próprios livros, respondo a entrevistas como esta, leio a literatura de todos os tempos e lugares. Eu não seria capaz de viver sem literatura. Mas não tento impor a ninguém meu modo de vida, meus valores e meus desejos. Sigo dois ditados, um alemão e outro inglês, que dizem: "Einfach leben" (Viver com simplicidade) e "Live and let live" (Viva e deixe viver).
Além de escritor, você é também professor. Você fala em "ensinar a aprender a escrever". Imagino que a ideia é complexa, mas poderia falar um pouco mais dela aqui?
Acho que nenhum professor consegue "ensinar" a coisa em si, em qualquer campo, mas pode "ensinar o aluno a aprender", ou seja, a indicar caminhos. O conhecimento se constrói de dentro para fora. Antes de ser conhecimento, precisa ser desejo, ou seja, o aluno precisa "querer saber". Então, minha função é mostrar aos alunos o quanto é vasta a literatura, e o quão prazerosa pode ser a experiência de leitura e escrita. Uma vez que o aluno tenha sido "conquistado", ele "aprende a ensinar a si mesmo".
Para Ser Escritor fala inclusive de temas práticos, como o lugar onde fazer lançamentos e o inconveniente de mandar originais que não foram solicitados. É quase um manual. Você teve um manual quando começou a escrever? Quem (ou qual livro) mais o ensinou sobre o ofício de escritor?
Discordo que seja um manual, no sentido estrito do termo. Até porque quem precisa de manual é piloto de avião e operador de retroescavadeira. Escritores precisam de liberdade criativa. Manuais são coleiras. Escritor precisa ler de tudo, sem método, sem manual, sem preceptísticas. Quem mais me ensinou sobre o ofício de escrever foram as biografias de outros escritores, as entrevistas, as cartas escritas por outros escritores. Lá é que está a essência do fazer literário. Por isso, minha dissertação de mestrado foi sobre as cartas de Mario de Andrade, e meu doutorado sobre os textos críticos escritos por Edgar Allan Poe, Julio Cortázar e Jorge Luis Borges. Em 2011, a Editora Leya publicará a nova edição de A Poética do Conto, minha tese de doutorado sobre esse assunto.
Serviço:
Para Ser Escritor, de Charles Kiefer. Leya, 160 págs., R$ 29,90.
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