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 | Ilustração: Robson Vilalba
| Foto: Ilustração: Robson Vilalba

"Eu estava lá..."

A escritora americana Gertrude Stein, 39 anos em 1913, dez de Paris, descreveu a noite da Sagração em A Autobiografia de Alice B. Toklas

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O modernismo nasceu na noite de quinta-feira, 29 de maio de 1913, no Théâtre des Champs-Élysées de Paris. Foi na estreia do balé A Sagração da Primavera/Le Sacre du Printemps, de Igor Stravinski, criado pelos Ballets Russes de Diaghilev, com coreografia de Vaslav Nijinski, orquestra sob a regência de Pierre Monteux e os figurinos notáveis de Nicolas Roerich. As inovações de Stravinski e Nijinski, que faziam do ritmo o elemento principal da obra, provocaram uma confusão colossal. Os detratores do Sacre, o chamaram "Le massacre du printemps." Stravinski contou : "Deixei a sala nos primeiros compassos do prelúdio, que provocaram risos e galhofas. Fiquei revoltado. Estas manifestações, de início isoladas, cresceram e provocaram contramanifestações, transformando o teatro numa algazarra medonha." Stravinski foi para os bastidores, onde Nijinski, trepado numa cadeira e com as caudas do fraque seguradas por Stravinski, berrava as contagens em russo para os bailarinos desorientados, tarefa complicada, porque os números russos acima de dez são polissilábicos, como 17 (semnadsat) e 18 (vosemnadsat). Enquanto isso, Diaghilev mandava acender e apagar alternadamente as luzes do teatro, na tentativa de acalmar o público, mas só conseguia deixá-lo ainda mais excitado. Como definiu o crítico Thomas Kelly: "Os pagãos no palco fizeram pagãos da plateia."

No fundo, tudo se encaixava na proposta básica da obra, o que justificou um pequeno jantar comemorativo, apesar do susto, num restaurante do Bois de Boulogne, depois da apresentação. Stravinski teria recebido a ideia em 1910 num sonho, a visão de um ritual pagão da Rússia pré-cristã em que uma jovem dança até morrer: "... surgiu a imagem de um ritual sagrado pagão: os sábios anciãos estão sentados em um círculo e observamos a dança antes da morte da menina que eles oferecem como um sacrifício ao deus da Primavera."

Choque

Ao transpor fielmente para a dança a música "bárbara" e fragmentada de Stravinski, Nijinski aboliu totalmente a beleza do balé, aqueles passos etéreos com voos líricos pousando suavemente como pássaros. Os dançarinos martelavam com os pés a madeira do palco, iguais a cossacos ensandecidos e raivosos. Foi esse o maior choque da Sagração. No dia seguinte à estreia, Adolphe Boschot, em L’Écho de Paris, escreveu ironicamente sobre "os gorros pontudos e os roupões de banho" que compunham os ridículos e incômodos costumes dos bailarinos, "que repetiam cem vezes seguidas o mesmo gesto: derrapam sem sair do lugar, derrapam, derrapam, derrapam. Quic! Dividem-se em dois bandos e se saúdam. Derrapam, derrapam, derrapam. Quic! Então, uma pose toda contorcida... e um torcicolo unânime!"

A Sagração desagradou aos velhos mestres, como Saint-Säens e Puccini (que viu e execrou), mas maravilharam novos compositores, como Debussy e Ravel, e também vanguardistas, como Schoenberg. Debussy disse: "É música selvagem com o conforto moderno. Como ficará a música francesa depois do Sacre?" Stravinski compôs primeiro uma versão a quatro mãos para piano antes de terminar a partitura orquestral. A primeira execução, para um pequeno grupo de pessoas, foi na casa do crítico Pierre Laloy, em seu piano Pleyel, com Debussy sentado à esquerda e Stravinski à direita. O crítico relatou: "Quando terminaram, ficamos todos mudos, abatidos como depois de um furacão vindo do fundo dos tempos que arranca nossas vidas pelas raízes." Um crítico recente definiu essa primeira versão: "É como se a Sagração fosse inteiramente submetida a um exame de ra­ios-X! A radiografia de sua ossatura rítmica, de sua musculatura harmônica, permite apreciar ainda melhor, como num ‘negativo’, a eficácia da orquestração stravinsquiana – os entrelaçamentos dos timbres raros (clarineta, fautim, flauta contralto), a surpresa de jogos insólitos (as trompas com a campana para o alto). Essa versão em preto-e-branco é melhor do que uma lição de anatomia sinfônica: exercícios práticos de álgebra e alquimia musicais."

A Sagração cumpriu seu calendário de cinco apresentações em Paris – menos ruidosas do que a estreia – e três espetáculos em Londres. No ano seguinte, a Primeira Guerra deixaria em segundo plano as atividades artísticas. Em 1920, o balé voltaria aos palcos em nova versão, coreografada por Leonid Massine.

Personagens

A epopeia da Sagração girou em torno de três personagens principais: Igor Stravinski, 31 anos, o aristocrata russo autor do rolo compressor sonoro que animou o balé; Serguei Diaghilev, 41 anos, também russo de origem nobre, empresário imaginativo e manipulador, que criou um dos grupos de balé mais famosos da história; e Vaslav Nijinski, 23 anos, filho de artistas circenses poloneses, que se tornaria o grande mito da dança no início do século 20. Nijinski estreou como coreógrafo com o balé Jeux, de Debussy, duas semanas antes da Sagração. Diaghilev e Nijinski eram amantes, mas sua relação àquela altura já chegava ao fim. O bailarino se casaria com Romola de Pulszky, 22 anos, uma húngara rica que acompanhava desde 1912 cada espetáculo de Nijinski, onde quer que fosse. Os Ballets Russes excursionavam pela América do Sul de navio e foi a bordo que obstinada fã assediou Nijinski sem trégua. Casaram-se em Buenos Aires, o que provocou a ruptura final entre o bailarino e Diaghilev.

Existe ainda a figura heróica de Gabriel Astruc, 49 anos, empresário teatral que foi agente de Mata Hari, Arthur Rubinstein e Enrico Caruso e construiu em 1913 uma revolucionária sala de espetáculos, no nascente estilo art déco: o Théatre des Champs-Élysées, com capacidade para 1.905 pessoas e totalmente lotado naquela noite de 29 de maio.

Legado

Em 1940, quando planejou Fantasia – uma viagem pela história da humanidade em desenho animado e música – Walt Disney ouviu falar do Sacre. "The Sock?" – entendeu mal – "A Meia?" Ouviu então a peça de Stravinski e ficou maravilhado: "É justamente o que eu quero para a criação do mundo, um cenário perfeito para vulcões, terremotos e animais pré-históricos em guerra, dinossauros e lagartos voadores." O cenário de danças eróticas e sacrifícios de virgens não era bem o que Disney tinha em mente para as famílias e criancinhas da América.

Mas a Sagração resistiu a qualquer tentativa de "domesticação." Passados cem anos da sua estreia, permanece uma peça excitante e selvagem, mexendo não só com a sensibilidade musical do ouvinte, mas com suas emoções.

No livro Os Primeiros Modernos – As Origens do Pensamento do Século 20 (1997), o historiador William R. Everdell fala daquele Annus Mirabilis capitaneado pela Sagração: "Enquanto a política permanecia nas sombras em 1913, a cultura do século 20 fez mais que simplesmente avizinhar-se. Ela explodiu. Observando de uma posição favorável, próxima ao fim do nosso século, o ano parece um Vesúvio cultural cujo efeito irrevogavelmente enterra os anos 1800 e cuja erupção ilumina agora mais de oitenta anos do pensamento ocidental."

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