"A literatura sempre tem a história como referência, na medida em que a criação sempre parte da experiência, o que não quer dizer que seja sempre biográfica, ou autobiográfica, mas que supõe e parte da experiência humana", explica Marilene Weinhardt, doutora em Letras e professora da Universidade Federal do Paraná.
O resumo cirúrgico dá conta da ficção. Já a chamada ficção histórica parece caminhar sobre um paradoxo, pois se refere a narrativas de criação (imaginadas pelo autor) ao mesmo tempo em que está mais ou menos ligada à História ou a eventos históricos.
Assim o egiptólogo francês Christian Jacq escreveu sobre o faraó Ramsés e o arqueólogo italiano Valerio Massimo Manfredi tratou da vida de Alexandre, o Grande. Os dois se tornaram fenômenos de venda em meio mundo e não são as melhores referências que se pode sacar quando o assunto é romance histórico.
O nome que não pode evitar é o da escritora belga Marguerite Yourcenar (1903 1987), autora do célebre Memórias de Adriano.
Para Marilene, o interesse de escritores (e de leitores) por ficção ligada a episódios históricos tem muitos motivos, quase todos situados entre dois extremos: "tanto pode decorrer da fuga da realidade, como da tentativa de entender profundamente o presente, buscando no passado as razões para que ele se apresente como tal", afirma a pesquisadora.
Benedito Costa Neto, doutor em Literatura e História e professor da Uniandrade, aponta para a moda e para as práticas culturais como influências inevitáveis. "A literatura acompanha a arquitetura, o cinema, as leituras da internet. Seria questão perguntar de onde vêm esses modos de ver o passado." Eles estariam ligados ao anseio de encontrar figuras heróicas capazes de servir de exemplo para o presente. O historiador José Murilo de Carvalho, autor de D. Pedro II, defende que as pessoas resgatam figuras importantes do passado sobretudo quando se sentem carentes de referências e não conseguem encontrá-las nos dias atuais.
Outro fato determinante é a busca por tradições, por momentos fundadores. "Assim, Mel Gibson faz um filme sobre civilizações ameríndias (Apocalypto), Zygmunt Bauman (sociólogo polonês) volta ao mito de Europa para explicar o continente que recebeu este nome e Hans Ulrich Gumbrecht (crítico literário) diz que o passado é uma coleção de coisas sem sentido, que preservamos como num museu", exemplifica Costa Neto.
E quanto ao interesse pela Antigüidade?
"A questão, principalmente no romance popular, é agradar as grandes massas, com conteúdo adaptado ao gosto atual", diz Costa Neto. "Nota-se ainda um certo modo de pensar o mundo greco-romano como decadente, erotizado ou violento."
Para Marilene, a visão que se tem da Antigüidade foi muito influenciada por imagens de filmes épicos e por narrativas de epopéias. "Em outra vertente, muito da produção que usa o deslocamento temporal para uma época distante, seja em que veículo for, recorre à Antigüidade como cenário justamente como forma de alienação, não para refletir sobre o tempo, mas para esquecer a temporalidade", explica, destacando que algumas representações são apenas formas de entretenimento, enquanto outras procuram pensar a condição humana. Neste grupo se destaca Marguerite Yourcenar.
"Seu modo de figurar o imperador romano Adriano, refletindo sobre o tempo de modo que só é possível quando se está em período da vida em que faz sentido escrever memórias, sem ressentimento com a humanidade, mas também sem ilusões, dissecando os comportamentos, virando os seres humanos pelo avesso, é razão para voltar a esse texto com freqüência", diz Marilene.
O americano Gore Vidal também ambientou narrativas na Antigüidade. Costa Neto compara duas obras "absolutamente dissonantes": Calígula, de Vidal, que inspirou o filme homônimo de Tinto Brass, e Memórias de Adriano, o clássico da escritora belga.
"Yourcenar usa as melhores fontes de sua época, as mesmas que usara antes um historiador como Edward Gibbon (1737 1794, autor de Declínio e Queda do Império Romano). A escritora constrói um perfil humano de um imperador, evidentemente dando um peso grandioso para a relação de Adriano com Antínoo. Esta relação, citada por historiadores antigos foi pouco explorada pelos historiadores modernos e Yourcenar investe nas possibilidades que haveria na relação e no como esta teria influenciado a vida de Adriano." (A imagem que ilustra esta página é da estátua que o imperador encomendou em memória de Antínoo.)
Sobre outros autores que partiram da Antigüidade para criar romances históricos, Marilene cita os portugueses Mário de Carvalho (Um Deus Passeando na Brisa da Tarde) e João Aguiar (A Voz dos Deuses). "Ambos dominam perfeitamente a arte da narração, produzindo textos sedutores. Para nós, brasileiros, há um efeito a mais. Acostumados a imaginar um Portugal envolto nas trevas da Inquisição, ou nas lutas entre mouros e cruzados como passado mais distante, somos apresentados a tempos ainda anteriores, em que romanos tomam as aldeias dos chamados bárbaros."
Marilene destaca ainda uma peculiaridade dos romances históricos produzidos hoje em dia eles não privilegiam aspectos específicos. Há interesse nos grandes nomes ligados ao poder e também em figuras anônimas. É possível ler sobre o cotidiano tanto nos palácios quanto nas ruas, mercados ou cabanas onde viveram as pessoas comuns. As histórias desses "ninguéns" são capazes de revelar detalhes incríveis sobre o passado, gerando narrativas intensas como a de qualquer faraó ou césar.
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