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A concepção que envolve o novo romance do americano Michael Cunningham é ambiciosa, temerária e, devido a certas circunstâncias, sujeita a comparações talvez desajustadas.

Dias Exemplares (Companhia das Letras , R$ 53; 408 págs.) engloba três novelas. Cada uma, por sua vez, contém uma tríade de personagens principais que parece repetir-se: um garoto de 11 para 12 anos, seriamente deformado; um moço com 20 e poucos ou 30 e poucos anos; e, como diremos, uma "fêmea", já que a última história introduz a figura de uma alienígena. A primeira novela, "Na Máquina", situa-se nos primórdios da industrialização nos EUA; a segunda, "A Cruzada das Crianças", se passa numa época atual pós-11 de Setembro; e a terceira, "Como a Beleza", transcorre nalgum momento do futuro, depois de a Terra ter passado por uma hecatombe nuclear.

Na narrativa inicial, o garoto Lucas procura ajudar a noiva (Catherine) do irmão (Simon) após este ter sofrido um acidente fatal numa máquina de curtume. Na intermediária, Cat é uma psicóloga do FBI que tenta desbaratar um complô de crianças suicidas (Simon é seu namorado, e Luke, um dos pequenos terroristas). Na última, o andróide Simon se alia à E.T. Catareen e ao menino Luke na busca por salvação num mundo devastado.

Whitman comparece

Vários temas e elementos (além dos personagens) percorrem as histórias, mas o principal é a presença ostensiva do poeta visionário Walt Whitman. Lucas (de "Na Máquina"), Luke (de "A Cruzada...") e Simon (de "Como a Beleza") são os porta-vozes dos versos do bardo, que recitam como que tomados por uma força incontrolável. Simon, por exemplo, declama as linhas por causa de um "chip de poesia" que lhe foi implantado.

A tentação é comparar esta obra com o livro anterior de Cunningham – o bem-sucedido e premiado As Horas –, e é aí que entra o possível desajuste.

Ali também havia algumas histórias distantes no tempo que se entrelaçavam e a presença de uma personalidade literária (Virginia Woolf).

Etos americano

A verdade é que o novo livro é bem mais ousado. Não só pela mistura de gêneros (o relato realista, o thriller e a ficção científica), não só pela escolha desconcertante de elementos situados na fronteira entre o bom e o mau gosto (a heroína reptiliana da última história, por exemplo), não só pelo tom apocalíptico que tende a desestabilizar narrativas perfeitamente coesas: a grande ambição de Cunningham está em sua tentativa de delinear um amplo painel crítico do etos americano.

O problema reside na montagem das partes. Ao transportar as questões americanas para o terreno do sci-fi, ele as generaliza e as universaliza. Trata-se de uma pretensão americana que remonta, de fato, a Whitman: o desejo de transformar o que é típico dos Estados Unidos – a confiança desmedida em si mesmo e a euforia orgulhosa por um Novo Mundo – num padrão que seja aplicável a toda a humanidade.

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