"Tomem lugares no paiol de pólvora." Esse e outros versos da música "Paiol de Pólvora", de Vinicius de Moraes e Toquinho, foram censurados pela ditadura militar, que ouviu nessas palavras uma metáfora perigosa. Mas a referência era literal, a um antigo depósito militar desativado que servira de inspiração e local de estreia da canção. Era 27 de dezembro de 1971: os parceiros, ao lado de Marília Medalha e o Trio Mocotó, inauguravam o Teatro do Paiol.
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A construção, que data de 1874, havia acabado de ser adaptada para virar espaço cultural uma reivindicação antiga dos artistas da cidade, que tiveram ali seu primeiro teatro de arena. A inauguração oficial, que ocorreu no aniversário da capital, em 29 de março de 1972, pode ser considerada o início de uma fase de criação de espaços culturais administrados pela cidade, quando foi construída boa parte dos locais em atividade até hoje.
Símbolo
O Teatro do Paiol foi o primeiro equipamento da Fundação Cultural de Curitiba (FCC). Numa época em que a cidade só tinha o Teatro da Reitoria da UFPR e o Guaíra, o novo espaço passou a abrigar shows, cinema, peças e exposições. Ao longo dos anos seguintes, com a criação de outros espaços, se tornou cada vez mais um reduto da MPB em plena ditadura. Além de Toquinho e Vinicius, passaram por ali Elza Soares, Gonzaguinha, Elis Regina, Ivan Lins, João Bosco, Djavan e outros medalhões.
"O Paiol se tornou tradicional no Brasil inteiro. Todo mundo o conhece e quer tocar ali", diz o músico e produtor cultural Ulisses Galetto, que estudou a história do teatro para sua dissertação de mestrado sobre políticas públicas para a música entre 1971 e 1983. "Ele veio a reboque de uma série de outras iniciativas e ações tomadas nas primeiras gestões de Jaime Lerner como prefeito de Curitiba", diz Galetto. "O governo quis firmar a cidade como um centro importante das artes", diz.
A série de mudanças urbanísticas pelas quais a cidade passava, somada às características do teatro o formato de arena, o pequeno espaço intimista de pouco mais de 200 lugares e a peculiaridade de ter sido um paiol de pólvora acabaram fazendo do local um espaço único. "Não à toa, é o símbolo da FCC", diz Galetto. "O contexto mudou muito, mas ainda é um espaço extremamente importante. Todo mundo fala dele no país inteiro. E é nosso."
Peças
O Paiol recebeu peças marcantes ao longo de seus 40 anos. Os espetáculos são rapidamente enumerados pelos guardiães da memória cênica da cidade, como o diretor Márcio Mattana. "Teve Esperando Godot, dirigido por Paulo José, com a Lu Grimaldi e a Ana Kfoury, uma versão muito inteligente da obra de Beckett. E Baal Babilônia, espetáculo solo do Guilherme Weber, sob a direção do Felipe Hirsch. Foi o primeiro trabalho da Sutil Companhia, e era realmente brilhante", diz Mattana.
O espaço circular parece atrair textos solitários e poderosos, que foram muitos. Em maio de 1978 passou por ali Marília Pêra, em Apareceu a Margarida, sob a direção de Aderbal Freire-Filho. Essa é uma das lembranças caras ao ator e fotógrafo de teatro Chico Nogueira, que acompanha a cena local desde os anos 1960 e enumera hits dos nossos diretores que passaram pelo Paiol. "Foram destaques para mim Arena Conta Tiradentes [que inaugurou o palco] e História do Zoo, com direção de Oraci Gemba e Bicho de Sete Cabeças, Céu da Boca e Urubu, de Manuel Carlos Karam", exemplifica.
Destaques do teatro nacional, como Marco Nanini, também passaram pelo local, num movimento crescente a partir da criação do Festival de Teatro, em 1992. A memória do teatro guarda ainda outras surpresas: por exemplo, no início houve sessões de cinema cult, e o projeto Parcerias Impossíveis apresentou, entre 1979 e 1982, conversas de duplas inusitadas como o então sindicalista Lula e o compositor Maurício Tapajós.