• Carregando...
 | Fotos: Jonathan Campos/ Gazeta do Povo
| Foto: Fotos: Jonathan Campos/ Gazeta do Povo

Há dois séculos Daguerre e Niépce, na França, e Hercule Florence, no Brasil, descobriam uma maneira de gravar as emanações luminosas dos objetos em uma chapa metálica. Surgia assim a fotografia.

Em seu início a fotografia se interessou pelas paisagens e pelas naturezas mortas, pois era impossível tirar retratos devido ao longo tempo de exposição, oito horas em média, exigido pelas primeiras chapas fotossensíveis. Neste período, as imagens fotográficas eram um mar de objetos inanimados e de paisagens onde as sombras se projetavam estranhamente para ambos os lados. Muitos dos primeiros fotógrafos eram pintores que, ao perceberem que a fotografia roubaria grande parte da clientela, abandonaram o ofício da pintura.

O próprio Daguerre era pintor. Foi natural que, na carência inicial de uma linguagem própria, a fotografia emprestasse o estatuto estético já consolidado da arte pictórica. Tanto que muitas imagens deste período inicial carregavam os mesmos elementos constitutivos das naturezas mortas. Frutas cuidadosamente arranjadas sobre uma bela toalha de mesa acompanhadas por belas jarras e garrafas formavam o clássico cenário de que a fotografia se apropriaria. Porém, as fotografias de naturezas mortas revelavam a precisão cirúrgica do corte fotográfico e sua tremenda vocação para a verdade.

Assim, as primeiras décadas do invento foram dedicadas a motivos inanimados que aparentavam velhos decalques de conhecidas pinturas. Somente em meados do século 19, com o avanço tecnológico das lentes e do suporte sensível à luz, é que o tempo de exposição caiu para a casa dos minutos, possibilitando o registro de retratos fotográficos.

Surgem grandes estúdios fotográficos que ajudam a transformar a fotografia num dos mais lucrativos negócios da França do século 19. Porém, o tempo de exposição à luz ainda exigia inevitáveis poses, já que os retratados necessitavam ficar absolutamente estáticos por minutos. O que explica, em parte, a cara sisuda dos retratados desta época. Não existiam sequer esboços de sorrisos, pois qualquer movimento causaria uma foto tremida e prejuízo financeiro para o retratado.

O constante avanço da tecnologia fotográfica ofereceu aos fotógrafos do século 20 um cenário completamente diverso. Filmes de alta sensibilidade, flashes, câmeras de pequeno formato e a capacidade de captura instantânea da imagem mudaram por completo o estatuto fotográfico do retrato. Três grandes áreas se destacaram na criação desta nova estética: o fotodocumentarismo, a fotografia de moda e o fotojornalismo das grandes revistas ilustradas.

A linguagem fotográfica amadurecia rapidamente e se integrava cada vez mais no espírito modernista do novo século.

A fotografia é um ato solitário, mas sua reflexão se dá na companhia invisível de um sem número de fotógrafos como Henri Cartier-Bresson e seu conceito de instante decisivo, August Sander e seu belo inventário do povo alemão, Richard Avedon e a elegância simples de seus ensaios, Diane Arbus e a constrangedora força do estranhamento, Flor Garduño e seu delicado olhar feminino ou mesmo o visceral Miguel Rio Branco e seus rubros retratos de um mundo cão.

Para ser um verdadeiro retratista é necessário ultrapassar o mero registro para, de mãos dadas com a tradição de 150 anos de retratos fotográficos, mirar a carne e atingir a alma. Tirar um retrato não é, e nunca será, apenas um apertar de botão. Um grande retratista conhece o estatuto invisível da fotografia, sua história e a dimensão poética de dar ao outro uma imagem perene da frágil condição humana em relação ao tempo. O retrato imobiliza aquilo que o tempo nos rouba. A fotografia funciona como um espelho com memória que insiste mostrar ao retratado o que um dia ele julgou ser. A dimensão do poderoso ato de se retratar reside na capacidade do obturador cortar uma pequena lâmina de realidade, um pequeno fragmento capaz de revelar que o fotógrafo busca sua própria identidade por meio da identidade alheia.

Osvaldo Santos Lima, é mestre em comunicação e linguagens, professor de fotografia da Universidade Federal do Paraná e diretor-fundador do Omicron, escola e centro de fotografia.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]