Em 1989, o maranhense Zeca Baleiro conversou pela primeira e última vez com uma de sua maiores influências: o cantor Sérgio Sampaio. Ainda desconhecido do grande público, Baleiro estava de passagem pelo Rio de Janeiro quando aproveitou um show do ídolo, autor do clássico "Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua", para conhecê-lo de perto. A idéia era convidar Sampaio para estrear a seção de entrevistas da revista Umdegrau, prestes a ser lançada por ele e um grupo de amigos em São Luís.
Feito o contato, os editores mandaram as perguntas pelo correio. Mas Sérgio Sampaio demorou tanto para responder que a revista acabou saindo sem a entrevista. Como nove entre dez publicações culturais, a Umdegrau morreu na casca, no primeiro número. Baleiro, no entanto, guardou uma boa recordação do período: um K-7, enviado tempos depois por Sampaio, contendo as prometidas respostas e, de quebra, uma música gravada ao fim da conversa.
Passados mais de 15 anos, "Maiúsculo", a canção incluída na fita, encerra um dos melhores álbuns-homenagem de todos os tempos. Produzido por Zeca Baleiro, Cruel é uma "operação resgate" de músicas inéditas de Sérgio Sampaio, morto em 1994, aos 47 anos, pouco antes de gravar seu terceiro álbum. O novo-velho CD, que acaba de chegar às lojas via Saravá Discos (selo do próprio Baleiro), traz 14 faixas gravadas por Sampaio no formato de demo e restauradas pelos engenheiros de som Walter Costa, Damien Seth e Carlos Freitas. Um misto de documento e recriação, encorpado pela participação de um time de instrumentistas responsável por acompanhar o violão e a voz do cantor.
Sempre lembrado como "artista de um hit só" e "maldito", o capixaba Sérgio Sampaio realmente conheceu o sucesso e a incompreensão em doses iguais. Apadrinhado por Raul Seixas, na época um bem-sucedido produtor, Sampaio vendeu mais de 500 mil cópias do compacto "Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua", em 1972. A música se tornou uma espécie de desabafo coletivo em meio ao período de repressão, mas o LP lançado no ano seguinte não teve a mesma resposta comercial.
A partir daí, a carreira de Sérgio Sampaio foi errática. Outros dois discos foram lançados, sem grande repercussão, e o artista passou a sobreviver às custas de shows pequenos, no estilo "banquinho e violão". A pecha de "maldito" surgiu justamente por conta de sua introspecção e recusa de participar do jogo político do meio artístico.
Mas o isolamento, se não fez de Sampaio um astro, contribuiu para seu amadurecimento musical. E a prova disso é Cruel, que, mesmo com os novos arranjos, surpreende pelo controle absoluto do cantor sobre suas canções. Como um João Gilberto marginal, Sampaio soa como uma orquestra de um homem só, acumulando influências diversas da Tropicália aos grandes seresteiros brasileiros, passando pelo samba e a bossa nova.
As letras, ainda atuais, são outro achado do CD. "Em Nome de Deus", que abre o disco, expõe sua faceta romântica ("Você que se esconda que eu vou procurar/ Você nem se iluda que eu vou lhe encontrar"). "Polícia Bandido Cachorro Dentista" é puro comentário social ("Porque dentista policia minha boca como se fosse bandido/ Porque bandido age sempre às escuras como se fosse cachorro/ Porque cachorro não distingue o inimigo como se fosse polícia/ Porque polícia bandideia minha boca como se fosse dentista"). "Maiúsculo" trata da criação artística ("Solto meus bichos pelas músicas quando me aflijo/ Mas um homem sem esse feitiço/ E sem um carinho a que recorrer/ Pode matar, querer morrer/ Pois perdeu todo o sentido de viver)". E por aí vai... Bem-vindo ao pequeno universo de Sérgio Sampaio. GGG1/2
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